
Ensaio - Entre o rugido e o sussurro: a lei do mais forte da Savana à Geopolítica
19/08/2025 -
Leões, Lobos, Chimpanzés e o Homem — e o desafio de transcender o alfa
19/08/2025
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Introdução — Quatro espelhos incômodos
Há algo de perturbador em contemplar os animais e reconhecer neles nossos próprios traços. Erguemos templos, parlamentos e universidades; mas, sob a pele da civilização, ainda pulsa a savana.
O leão governa pelo rugido da força. O lobo conduz pela confiança da matilha. O chimpanzé ascende pela intriga, trocando favores e traições. O homem, que se julga emancipado, oscila entre esses três arquétipos — rugindo, uivando e sussurrando — enquanto reinventa instituições como palcos para a velha disputa pelo alfa.
A diferença não está na essência do jogo, mas no cenário. A violência bruta converteu-se em diplomacia, propaganda, finanças, tecnologia. O rugido ressoa em discursos inflamados; o sussurro, mais letal, infiltra-se em narrativas que colonizam consciências.
Surge, então, a pergunta incômoda: mudamos de fato as regras ou apenas refinamos as armas? Este ensaio percorre essa tensão entre biologia e filosofia, instinto e civilização. Do acampamento tribal ao Conselho de Segurança da ONU (Organizaçãodas NaçõesUnidas), veremos como a lei da dominância persiste — e perguntaremos, com Hegel, se é possível uma síntese que transcenda o alfa sem abolir a liderança.
2. A savana em nós — raízes biológicas do poder
Muito antes de cidades e parlamentos, houve a savana africana. Ali se forjaram instintos que ainda moldam nosso modo de exercer poder. A sobrevivência não dependia apenas da força: exigia astúcia, alianças e disciplina. Nessa arena nasceram arquétipos que projetamos até hoje na política.
O leão simboliza a violência direta: conquista o bando no sangue e legitima-se pela imposição. Ditaduras, golpes e guerras ecoam esse rugido. Mas o poder fundado apenas no medo é sempre provisório.
O lobo introduz outro registro: o alfa não se impõe apenas pelos dentes, mas porque guia caçadas e mantém coesão. Seu poder é também serviço, reconhecido pelo benefício coletivo. Foi nesse espírito que lideranças como Lincoln ou Mandela inspiraram confiança em momentos de crise.
O chimpanzé, descrito por Jane Goodall e Frans de Waal, revela a astúcia da intriga: favores, alianças e traições decidem quem sobe ou cai. Um macho fraco pode chegar ao topo se manipular apoios. Nas sociedades humanas, parlamentos e diplomacias reproduzem essa lógica de bastidores.
Reunimos os três estilos — força, cooperação e intriga — e os sublimamos em palavra, lei e símbolos. Mas a matriz permanece. A savana não desapareceu: apenas migrou para palácios, tribunais e redes sociais.
3. Do punho à palavra — o nascimento da dissuasão
Se leão, lobo e chimpanzé simbolizam nossos instintos, o homem trouxe uma mutação decisiva: a palavra. Com ela, o punho deixou de ser a única forma de impor autoridade. O rugido permaneceu, mas passou a conviver com o sussurro que persuade, ameaça e organiza.
A linguagem inaugurou um campo invisível do poder: já não bastava vencer pela força, era preciso convencer. Palavras podiam convocar coragem, incutir medo, legitimar chefias. O guerreiro matava; o xamã, narrando mitos, governava. O corpo cedeu espaço ao símbolo — e este passou a moldar o comportamento.
Na Grécia, o discurso tornou-se arma e ciência. Tucídides registrou debates como batalhas, e Aristóteles codificou a Retórica em ethos, pathos e logos. Quem tinha voz possuía poder; quem era silenciado, perdia cidadania.
Religiões também exploraram essa lógica: faraós e imperadores se sustentaram como deuses vivos, e a Igreja medieval governou mais pela promessa de salvação do que por exércitos.
A palavra não só legitimava: criou a dissuasão. Sun Tzu já ensinava: “a suprema excelência é subjugar sem lutar”. Na Guerra Fria, o maior sussurro da história foi a paz pelo medo nuclear.
Hoje, o campo é digital: fake news e algoritmos colonizam consciências. A palavra tornou-se ponte e punhal. O desafio é usá-la para domesticar o rugido — e não apenas refiná-lo.
4. O teatro do bem contra o mal
O poder não se sustenta apenas na força ou na astúcia. Para durar, precisa de legitimidade. É aí que surge o teatro moral: a encenação do conflito como luta entre justiça e perversidade. Essa gramática atravessa religiões, ideologias e regimes de todas as cores.
As tradições religiosas consolidaram o imaginário dualista. O combate entre bem e mal inspirou horizontes de dignidade, mas também legitimou cruzadas e perseguições.
A política moderna herdou essa lógica: governos e partidos apresentam-se como guardiões da verdade, enquanto reduzem o adversário a corrupto, tirano ou inimigo da pátria.
A estratégia não tem campo único. Revoluções de esquerda narraram-se como libertação dos oprimidos; movimentos de direita, como defesa da ordem e da civilização. Em ambos, a moralidade serviu como arma simbólica, galvanizando massas e justificando rupturas.
A história, contudo, mostra diferenças. Ditaduras de esquerda cristalizaram esse teatro em regimes de longa duração — URSS, China maoísta, Cuba, Coreia do Norte, Venezuela. Todas se diziam libertadoras e converteram-se em censura e miséria.
No Oriente Médio, Irã e Hamas repetem o padrão. Para completar, parte da intelectualidade rebatiza tais regimes como “de direita”, numa manobra semântica que mascara responsabilidades.
Ditaduras de direita — Salazar, Franco, Pinochet, militares no Brasil — também foram autoritárias, mas raramente se perpetuaram. Quando ruíram, abriram transições tensas, porém viáveis. Seus legados foram graves, mas não equivaleram à devastação prolongada das experiências de esquerda.
O risco maior é o fanatismo: quando o outro é reduzido ao mal absoluto, desaparece o diálogo. Hoje, redes sociais amplificam o maniqueísmo em slogans e hashtags, convertendo cidadãos em torcedores.
A moralidade não deve ser descartada: sem ela, a política é selva. Mas, sequestrada por ideologias, degenera em tirania. A lição é clara: o teatro do bem contra o mal pode inspirar, mas quando monopolizado, conduz à barbárie.
5. Ascensão e queda dos dominantes
A savana ensina que nenhum alfa reina para sempre. O leão é deposto por rivais, o lobo perde o posto ao falhar com a matilha, o chimpanzé manipulador acaba traído. O poder fundado apenas no medo, na cooperação desgastada ou na conspiração é instável. Essa lógica se repete na história humana.
Roma, que parecia eterna, ruiu por invasões e decadência interna. Napoleão sucumbiu à ambição desmedida. Hitler, que mobilizou massas sob a retórica do “bem contra o mal”, foi tragado pela própria hybris.
Tucídides já notara: quando uma potência ascendente desafia outra consolidada, o choque é quase inevitável. Esparta e Atenas foram exemplos clássicos; muitos veem hoje nos EUA e na China um paralelo contemporâneo.
Mas as quedas não são iguais. Ditaduras de direita — Franco, Pinochet, militares no Brasil — censuraram e perseguiram, mas não se perpetuaram. Perderam apoio e ruíram, abrindo transições, ainda que tensas, para a democracia. Seus legados foram pesados, mas não arrasaram por completo economias e instituições. Espanha, Chile e Brasil se reconstruíram.
Ditaduras de esquerda tratam o poder como irreversível. A URSS só caiu pela implosão e, de suas ruínas, brotou uma autocracia esdrúxula — mutação deformada pelas sequelas do socialismo.
Cuba permanece estagnada, sobrevivendo à custa do trabalho escravo de sua própria gente, médicos incluídos, exportados como escravos de ganho.
A Coreia do Norte converteu-se em uma dinastia totalitária de ferro, onde sucessores hereditários governam com fome, cárcere e culto à personalidade, mantendo toda a população como refém.
A Venezuela, em apenas duas décadas de chavismo, foi devastada, convertida em narcoestado sustentado por generais e cartéis. O padrão é claro: enquanto regimes autoritários de direita costumam ceder, os de esquerda tendem a se eternizar — até a ruína.
Há também colapsos violentos, como Gaddafi na Líbia e Saddam no Iraque, cujas quedas sangrentas arrastaram sociedades ao caos.
O ciclo é recorrente: ascensões fulgurantes e quedas inevitáveis. O desafio é aprender com ele, convertendo dominância em liderança voltada ao serviço. Até lá, seguimos encenando, em escala global, a velha lei da savana.
7. O humano — síntese e mutação
O homem é fusão imperfeita de leão, lobo e chimpanzé. Capaz de rugir, conspirar e cooperar, levou esses arquétipos adiante ao criar instituições: leis, parlamentos, mercados e tratados.
Essas instituições não eliminaram os instintos, mas abriram novos palcos para disputá-los. Dessa ampliação surgiu um poder multidimensional — militar, econômico, narrativo e tecnológico.
As raízes biológicas, contudo, seguem vivas. O que mudou foi a escala. Redes sociais, algoritmos e armas cibernéticas ampliaram a força dos impulsos ancestrais, tornando-os instantâneos e globais.
O rugido não se restringe mais ao campo de batalha: ressoa em discursos virais. A intriga deixou os gabinetes para circular em fluxos digitais invisíveis. Até a cooperação se expande, embora sempre vulnerável à manipulação.
Como lembra Edgar Morin, o ser humano é um “complexo de complexos”: mistura inseparável de natureza e cultura, corpo e espírito.
Somos, ao mesmo tempo, savana e cidade, instinto e filosofia. Vivemos na tensão entre o animal que herdamos e a promessa de transcendê-lo — dilema que define nossa aventura histórica.
8. O salto evolutivo
Desde a Antiguidade, filósofos buscaram superar a lei do mais forte. Aristóteles via na política a busca do bem comum; Confúcio defendia a liderança pelo exemplo; Buber propôs a relação Eu–Tu como encontro; Hegel destacou o progresso pela síntese de contrários; e Frankl lembrou que a liberdade última é dar sentido, até à dor.
Nos séculos recentes, surgiram ensaios de cooperação global. A ONU nasceu para transformar guerra em negociação. A União Europeia encarnou uma “matilha ampliada”, baseada em confiança e interdependência.
Tratados climáticos e instituições internacionais indicam aquilo que já sabemos — mesmo de maneira vacilante: a sobrevivência exige mais do que rugidos ou conspirações, exige valores, virtudes e sabedoria.
Mas o salto permanece difícil. Nacionalismos inflamados e diplomacias ocultas mostram a persistência do instinto tribal: a savana retorna, vestida de modernidade, mas mantendo vícios ancestrais.
A tecnologia intensifica esse dilema. Pode ampliar o rugido — drones, arsenais nucleares — ou o sussurro — algoritmos, fake news.
O verdadeiro salto, porém, não é técnico, mas ético: transformar impulsos herdados em mais do que inteligência coletiva, convertendo dominação em convivência humana elevada pela sabedoria.
9. Epílogo — Síntese hegeliana e o horizonte da reconciliação
A pergunta final permanece: mudamos a essência do jogo ou apenas as armas? Sob a superfície civilizada, seguimos presos à lógica da dominância — leões, lobos e chimpanzés ainda atuam, mais sofisticados.
Nietzsche lembraria a vontade de potência; Camus, o eterno retorno desses instintos. Não há paraísos políticos, apenas esforço precário de contê-los sob máscaras novas.
Mas o humano também é promessa. Hegel via a história como espiral: a força pode ser último recurso, a cooperação tornar-se norma, a astúcia virar sabedoria coletiva. Instituições frágeis já ensaiam a domesticação do alfa.
O risco, porém, é permanente: crises e medos reacendem rugidos e conspirações. Talvez nunca transcendamos a lei do mais forte, mas há dignidade em reconhecer o ciclo e buscar fissuras.
Entre o rugido e o sussurro, resta-nos imaginar uma voz nova — não para negar nossa herança, mas para transfigurá-la. A filosofia lembra que nada está dado, que a história é movimento e que a síntese, ainda que sempre provisória, é possível. Essa é a responsabilidade da nossa geração: não desperdiçar a chance de reconciliar força e cuidado, poder e empatia.
Se falharmos, a humanidade pode sucumbir à sua própria soberba.
Mas, se ousarmos, talvez um dia olhemos para trás e percebamos que os espelhos da savana não eram condenação, mas ponto de partida.
Só então a política deixará de ser mera savana com luz elétrica — e poderá tornar-se, enfim, espaço de verdadeira humanidade.
10. Pós-escrito — O espelho turvo do Brasil atual
O Brasil vive um paradoxo inédito: um “golpe ao contrário”. Jair Bolsonaro admitiu ter cogitado um estado de sítio, gesto que evocaria 1964; mas, ironicamente, foi a esquerda que consolidou práticas de repressão, agora em nome da defesa da democracia.
Assistimos à volta de censura, perseguições e prisões políticas — um espelho invertido e grotesco de nosso passado autoritário. Mas a ditadura de hoje não se assume como tal: é ditadura velada, que se apresenta em trajes jurídicos e digitais, envolta em narrativas de proteção institucional e em discursos de salvação coletiva.
A diferença é a velocidade. Se antes ditaduras se impunham em décadas, hoje o autoritarismo se dissemina em gigahertz, impulsionado por algoritmos e narrativas digitais. Decisões monocráticas repercutem em minutos; hashtags fabricadas tornam-se “verdade” antes do fim do dia. O leão ruge nos tribunais, o chimpanzé sussurra em bastidores virtuais e o lobo vê sua autoridade corroída pela polarização.
Contudo, essa mesma velocidade guarda uma ambivalência decisiva: o que nasce rápido também pode desmoronar rápido. As engrenagens digitais que hoje amplificam o controle podem amanhã expor seus abusos a milhões de pessoas em tempo real. A pressão internacional, que antes levava anos para se organizar, agora se manifesta em dias ou semanas. O que em 1964 se consolidou em vinte anos, hoje pode se fragilizar em meses.
É esse paradoxo que define o presente: a ditadura velada se ergue com a força da técnica, mas talvez não consiga se sustentar diante da própria aceleração que a alimenta. Quanto mais rápida a repressão, mais veloz também a reação, a denúncia, a memória coletiva.
Ainda assim, a crise pode ser fértil. Talvez não precisemos esperar duas décadas para retomar equilíbrio. Se aprendermos que liberdade não é dádiva, mas conquista sempre ameaçada; se cultivarmos a vigilância lúcida e desconfiarmos de todo alfa — togado, digital ou partidário — sairemos mais fortes.
A tarefa é atravessar este espelho turvo sem perder a esperança, transformando dor em amadurecimento democrático. Pois só assim poderemos um dia olhar para trás e dizer que, mesmo sob a sombra de uma ditadura velada, o Brasil ousou acelerar também o seu próprio despertar.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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