
As aventuras de Cacimba, o homem que mentia com verdades(1)
23/08/2025 -
Por Zé da Flauta*
João da Silva nasceu no pé de uma serra sem nome, entre o sopro do vento e o eco de uma oração antiga. Ninguém sabe o dia exato, nem quem foi o parteiro. Dizem que a mãe pariu sozinha, debaixo de um umbuzeiro, e quando o menino chorou, o galo cantou três vezes na mesma hora, mesmo sendo meia-noite. A mãe morreu no parto, mas o menino sobreviveu. Foi criado por uma cabra cega e um vaqueiro mudo.
A certidão de nascimento veio mais tarde, escrita à mão num papel de pão, só com duas palavras: "João" e "Silva". Mas ninguém o conhecia por esse nome. No sertão todo, de Exu a Piancó, ele era chamado de Cacimba, porque suas histórias vinham de um fundo tão fundo, que parecia que ele tirava as palavras da boca da terra. E como boa cacimba, ninguém sabia onde começava, nem onde terminava.
Cacimba era magro feito promessa de pobre, com olhos de quem já viu coisa demais e sorriso de quem escondia o diabo e dois anjos no bolso. Vivia viajando pelas cidades do interior do Brasil, sem rumo, sem hora e sem medo. Era bom de papo, bom de sinuca, bom de bilhar, bom de mulher e melhor ainda de mentira. Mas suas mentiras não eram mentirinhas de feira: eram mentiras enxecáveis, daquelas que só se duvida depois de uma semana pensando.
Ele dizia: — Eu não minto. Eu adianto verdades.
E todo mundo acreditava, mesmo sem querer.
Tinha dois macaquinhos invisíveis, um em cada ombro. O do lado direito se chamava Simão, e era da prudência, do freio, do juízo. O do lado esquerdo, Sebastião, era da ousadia, da tentação, do risco. Quando Cacimba ficava em dúvida sobre alguma decisão, como entrar ou não num cabaré de viúva, ou aceitar um duelo de sinuca valendo uma garrafa de cachaça benta, ele ouvia os dois em silêncio. Coçava o queixo com o polegar esquerdo, mirava o horizonte, e escolhia a opção mais bonita de contar depois.
Teve gente que jurou ver Cacimba conversando sozinho no meio da estrada, brigando com os macacos e rindo. Teve até quem dissesse que os bichos eram reais e que só apareciam pra quem tinha os pecados certos.
*Zé fa Flauta é músico, compositor e cronista.
