
O sofisma da vedação à Anistia: quando o STF ameaça violar o Estado Democrático de Direito em nome da Democracia
05/09/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Introdução: A Suprema Corte e a supremacia da interpretação
O Supremo Tribunal Federal exerce, por designação constitucional, o papel de guardião da Constituição. Essa função, porém, não é carta branca para a Corte se converter em criadora autônoma de sentidos normativos desvinculados do texto constitucional.
Inflexão intensa
Nos últimos anos, especialmente, tem-se observado uma inflexão intensa e preocupante nesse papel: sob a justificativa de proteger o Estado Democrático de Direito, o STF tem expandido interpretações constitucionais em matéria penal, especialmente no que diz respeito à possibilidade de anistia.
Entretanto, convém destacar que essa expansão não se sustenta à luz do princípio da legalidade penal, nem à luz da interpretação restritiva que rege todo o Direito Penal em regimes democráticos.
Assim, este ensaio propõe-se a demonstrar, com base estritamente técnica, que o STF incorre em sofismas hermenêuticos ao afirmar que certos crimes seriam "impassíveis de anistia" sem que tal vedação esteja expressa no texto constitucional ou em lei infraconstitucional.
2. A legalidade penal como pilar constitucional inafastável
O princípio da legalidade penal é um dos pilares do Estado de Direito. Previsto no art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal, determina que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".
Esse princípio basilar se desdobra em outros dois: a exigência de tipicidade fechada e a interpretação restritiva da norma penal. Também se proíbe expressamente a analogia in malam partem, ou seja, a ampliação interpretativa que possa prejudicar o acusado ou restringir seus direitos.
A anistia, como instituto de natureza política e efeitos penais, é regulada por lei. Logo, sua admissibilidade ou inadmissibilidade também deve obedecer à legalidade estrita.
Não cabe, portanto, ao Judiciário, por via interpretativa, negar efeitos a institutos legais sob pretextos morais ou conveniências conjunturais.
3. O rol taxativo do art. 5º, XLIII da Constituição: limites e finalidade
O art. 5º, inciso XLIII da Constituição afirma:
"A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (...)."
Redação
A redação é clara e taxativa. Se a Constituinte de 1988 desejasse incluir crimes contra o Estado Democrático de Direito como não anistiáveis, poderia tê-lo feito expressamente. A sua ausência nesse rol indica uma opção deliberada: os crimes não mencionados permanecem passíveis de receber anistia nos moldes da legislação ordinária.
Aqui é preciso lembrar que a Constituição de 1988 se voltava contra o arbítrio instaurado no pós-1964, quando a Ditadura Militar instrumentalizou conceitos como segurança nacional e defesa da ordem institucional para criminalizar opositores políticos.
O atual texto constitucional buscou limitar o poder punitivo do Estado exatamente para impedir que se repetisse a prática de punir por "delitos de opinião" ou por crimes vagamente definidos contra a "democracia".
O argumento de que tais crimes estão implicitamente abarcados por serem "contra a democracia" incorre em interpretação extensiva vedada em Direito Penal. A intenção do legislador, no caso da anistia, deve ser manifestada, não presumida.
Por outro lado, considerar crimes como não anistiáveis com base em princípios genéricos, e não em previsão legal expressa oriunda do Poder que representa o povo, é abrir mão do princípio da legalidade, fundamento essencial do Estado de Direito que se pretende proteger.
Mas se a Constituição não proibiu, quem pode proibir?
E se o legislador não vedou, por que o intérprete se arroga o direito de vedar?
4. O sofisma jurisprudencial: esticando a Cláusula Pétrea até que ela quebre
A estratégia argumentativa adotada por ministros do STF consiste em afirmar que o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV), e que, portanto, qualquer tentativa de atentado contra ele seria automaticamente insuscetível de anistia. Essa afirmação é falaciosa.
O fato de algo ser cláusula pétrea significa que não pode ser abolido por emenda constitucional. Isso não significa que se possa construir um novo regime de exceção penal a partir dessa cláusula. A proteção à democracia exige justamente o respeito à legalidade estrita, e não o seu abandono por conveniência hermenêutica.
Essa é a base do sofisma: invoca-se um princípio elevado (a defesa da democracia) para justificar a quebra de outro mais objetivo e essencial (a legalidade penal). Estica-se a cláusula pétrea até que ela se torne um rolo compressor hermenêutico.
5. O paradoxo autoritário: quando a Democracia é invocada contra si mesma
O que emerge dessa interpretação é um paradoxo clássico: pretende-se defender a democracia abolindo seus fundamentos normativos.
A democracia não é apenas um regime de resultados, mas um regime de formas e garantias. Entre essas garantias está o devido processo legal, o princípio da presunção de inocência, a ampla defesa e, sim, o direito à anistia nos moldes da lei.
Transformar a cláusula pétrea em instrumento de punição ilimitada é negar a função garantista da Constituição.
Quando o Judiciário se converte em órgão de justiça distributiva simbólica, passa a operar sob lógicas morais, não jurídicas. E isso é o início de um regime de exceção hermenêuticamente travestido de legalidade.
6. O Direito Comparado e o Discurso dos Direitos Humanos: dupla medida e contradição
Nos tribunais internacionais, especialmente na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a anistia é condenada apenas quando se refere a crimes contra a humanidade ou violações sistemáticas de direitos humanos praticadas por agentes do Estado. O caso da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, foi julgado nessa chave.
Não há decisão internacional que declare como inadmissível a anistia a crimes com conotação política interna ou contra a ordem institucional, desde que não envolvam crimes de lesa-humanidade.
Aplicar a jurisprudência internacional seletivamente é mais uma demonstração de que o princípio não é o critério: o critério é a conveniência ideológica.
7. Rumo a um Estado de Exceção Hermenêutico: o novo Leviatã de toga
Quando a interpretação constitucional passa a operar como substituta da lei, a ordem jurídica perde sua previsibilidade. O STF, ao negar em tese a possibilidade de anistia sem respaldo legal expresso, ameaça inaugurar uma jurisprudência criativa que permite punir retroativamente, criminalizar opiniões e excluir direitos com base em narrativas e "contextos históricos".
Esse é o novo Leviatã de toga: uma instância moralizante que substitui o legislador, corrige a história, define quem pode ser perdoado e quem deve ser execrado. Tal configuração é incompatível com a democracia liberal e com o Estado de Direito.
8. Conclusão: redenção pela Legalidade — não há Democracia sem limites ao Poder
A democracia não se protege pela supressão de garantias, mas por sua firme aplicação universal. Não é aceitável que o Supremo Tribunal Federal utilize a cláusula pétrea do Estado Democrático de Direito para desrespeitar o princípio da legalidade penal, a separação dos poderes e o papel do legislador. É preciso restaurar os limites institucionais e a função garantista da Suprema Corte.
Anistiar ou não anistiar é uma decisão política do Parlamento, nos limites estabelecidos pela lei. Fora disso, é o império da vontade disfarçado de hermenêutica. E não há maior traição à democracia do que permitir que a interpretação constitucional se converta em instrumento de exceção permanente.
Em nome da democracia, exige-se a fidelidade à legalidade. Tudo o mais é sofisma.
9. Epílogo: o espelho turvo da História
Vivemos tempos em que a história parece repetir seus erros, não como farsa nem como tragédia, mas como um jogo de espelhos turvos, onde os vícios do passado são reciclados em nome de virtudes declaradas.
Executivo hipertrofiado
Ontem, foi o Executivo hipertrofiado, que, sob o pretexto de defender a ordem, esmagava liberdades e ditava verdades. Hoje, é o Judiciário hipertrofiado que, sob o manto da defesa da Constituição, se converte em poder ilimitado — legislando por interpretação, punindo por narrativas e suspendendo garantias fundamentais em nome de abstrações moralizadas.
A Constituição de 1988 foi erguida sobre os escombros do autoritarismo precisamente para impedir que qualquer poder, seja ele militar, civil ou togado, se sobrepusesse aos demais. O que se vê, no entanto, é um novo tipo de exceção, mais sutil e mais perigosa: não se fecham tribunais com tanques, mas se calcam decisões com unanimidades forjadas e jurisprudências voláteis.
Ruy Barbosa, que tanto temia os excessos do Legislativo e do Executivo, certamente ergueria a voz diante da onipotência hermenêutica de um Supremo que não reconhece limites. Dizia ele que “a pior ditadura é a do Poder Judiciário, porque contra ela não há a quem recorrer”. A advertência tornou-se profecia.
No passado, antes mesmo de eu me entender por gente, o desequilíbrio entre os poderes levou ao fechamento de tribunais pela força — sinal extremo de um tempo sem freios. Hoje, espero sinceramente, já em minha terceira idade, não precisar ver a repetição do mesmo roteiro, agora com os papéis invertidos e os aplausos trocados de lado.
Proteger a democracia não é repetir os erros do autoritarismo com outra toga ou outro discurso. Proteger a democracia é resistir à tentação dos excessos, ainda que travestidos de justiça. Porque toda justiça que ignora limites se torna, cedo ou tarde, instrumento de injustiça permanente.
10. Pós-escrito: o povo em verde e amarelo
Em tempos de distorção hermenêutica e concentração de poder, é essencial lembrar que o verdadeiro fundamento da democracia não está nos palácios nem nas togas — está nas ruas, nas praças, nas consciências despertas.
Quando o Estado se esquece do povo, este precisa lembrar ao Estado de onde emana sua autoridade e em nome de quem todo poder é exercido.
É por isso que ver a população ocupar as ruas com as cores da bandeira nacional não é um ato menor, nem espetáculo vazio: é um gesto civilizacional, um lembrete visível de que a soberania pertence ao cidadão comum — e não aos intérpretes de ocasião que dobram a Constituição à medida de seus interesses.
Não há democracia viva onde o povo está ausente. E não há advertência mais poderosa aos “poderosos de plantão” do que a presença pacífica, consciente e determinada da cidadania vestida de verde e amarelo, reafirmando que liberdade, justiça e legalidade não são concessões de cima para baixo, mas direitos inegociáveis.
Que a memória do passado e a lucidez do presente inspirem essa mobilização — não como rebelião cega, mas como vigilância firme.
E que aqueles que hoje julgam, legislam e governam reaprendam a escutar o silêncio eloquente de uma bandeira erguida por milhões. Ela não brada por revanche, mas clama por equilíbrio. E o equilíbrio é o verdadeiro nome da justiça.
10.1. Contra a narrativa ardilosa: o povo perdoa antes do julgamento
Quando se ouve de um ministro do Supremo que seria “melhor julgar antes de discutir anistia”, é preciso redobrar a atenção. Aparentemente técnica e sensata, essa sugestão carrega uma armadilha: permite que o Judiciário consolide condenações - inclusive com efeitos políticos irreversíveis - para depois negar, em nome da coisa julgada, os efeitos de uma anistia legítima aprovada pelo Parlamento.
História constitucional
Mas a história constitucional brasileira ensina o contrário: a anistia não é um apêndice do processo penal, mas uma decisão política soberana, que pode e deve anteceder o julgamento, quando se quer restaurar a harmonia institucional antes que a perseguição se converta em vingança disfarçada.
Perdoar antes do julgamento não é fraqueza — é grandeza. É impedir que o Direito seja sequestrado por narrativas. É afirmar, com serenidade, que a Constituição continua sendo um pacto de garantias, não um instrumento de punição seletiva. E que o povo, sim, tem o direito de perdoar antes que o tribunal sentencie em seu nome — mas contra sua vontade.
(*) Jorge Pinho é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - As crônicas refletem a visão, a opinião e a imaginação dos seus autores.
