Lembrei, ainda menino era levado para visitar meu avô. Encostado na mureta do terraço, eu observava o octogenário, vestido de pijamas, sentado em uma cadeira de balanço. Pendia a cabeça mirando um ponto qualquer no chão com um bico. Depois, olhava ao redor e perguntava qualquer coisa para o mais próximo. Engraçado encontrar o mesmo rosto e trejeito em meu pai. Mais engraçado é reconhecer os mesmos gestos em mim durante a vida.

No meu repertório de recordações está bem viva a expressão um tanto carrancuda, enrugada e cabeleira branca, desgrenhada de uma mulher. Eu me esgueirava ao encontro dela enquanto cochilava, sentada em uma cadeira de balanço Bauhaus, em um canto da sala de visitas de minha tia. Já sentia o cheiro do sarro do fumo de rolo entranhado nas roupas quando ela acordava tossindo. Corri para o colo de minha mãe, sentada no terraço. A bisavó partiu, menina, do interior de Pernambuco, onde vivia com os pais lavradores, levada por um caboclo.
Ocuparam terras em um subúrbio do Recife, ensinaram aos filhos o modo de cuidar de bichos e plantas. Um deles gostou de criar galinhas e aprendeu a negociar seus ovos e matrizes. Meu avô, no seu turno, passou esse gosto ao meu pai, além de lhe iniciar na leitura e nas contas de Taboada, habilidade útil no comércio da capital, como vendedor e administrador. Por sua vez, repassou-me o prazer da leitura, da escrita, o que me trouxe onde estou e ao que sou.

O tempo ecoa na cabeça. Um único tique de todos os tiques e taques inventados por nós, repetindo saberes agregados a novos, talvez não tão novos, visto ser possível advirem de taques quaisquer repetidos em ciclos diferentes. Poderia ser, o tataravô de minha trisavó, mais lento que os demais e somente agora chegou a mim.
Puxa! Esse enxurro se apossou desse escrevente que nem estava aí para toda essa água, toda essa gente quem eu sou. Todos continuam em mim, sem contar outro tanto do lado da minha mãe.

Carrego-os e cabe a mim repetir erros, marcar passo num espaço miúdo ou transformar, rearranjar pensamentos, comportamentos embarcando a todos nós em um trem cheio de tecnologia, beleza e alegria, dando voltas no mundo ou até fora dele.

Não seria esse texto uma reverberação do gosto de meu pai pelas artes cênicas, com o que ele flertou na juventude? Razões mais prementes o induziram a lidar com o comércio. Labuta aprendida com os ovos.

Necessidades diversas nos levam a tomar partido por uma trilha para caminhar, nem sempre coincidente com o desejado. Coisas que informam aos amigos e parentes que somos bem sucedidos, nos colocando em um degrau social visível quando outros levantam a cabeça não, necessariamente, atendem à vontade de ser feliz. Pode ocorrer de ser encontrada em um caminho desses, mas terá nascido em você nesse taque ou trazido para você de um tique tão antigo que até é impossível de perceber.

Nos tique-taques mais recentes percebo os mais antigos, mesmo sem identificar qual antigos são, e faço e refaço as trilhas, esquinas e desertos por onde ando; retorno para pontos onde já passei e encontro tudo novo de novo.
Será a primeira vez para todos nós em mim.

Não sou o mesmo ao atravessar um rio pela segunda vez, tão pouco o rio é o mesmo, mas no retorno a essa margem reconhecerei quem esteve antes e nuances no caminhar das águas.


*AJ Fontes, contista e cronista, engenheiro aposentado, e eterno estudante na arte da escrita, publicou o livro de contos: ‘Mantas e Lençóis’.