
Entre a água e o pedágio: a alienação dos rios da Amazônia
08/09/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
"Nenhum homem possui o rio: ele pertence ao tempo e à comunidade.
Sua concessão deve atender primeiro ao interesse público."
- Jorge Pinho
1. O decreto como sintoma
O Decreto nº 12.600/2025, assinado em 29 de agosto, incluiu os rios Madeira, Tocantins e Tapajós no Programa Nacional de Desestatização. Sob a retórica da eficiência, esconde-se um vício constitucional: rios navegáveis são bens da União, de uso comum do povo (art. 20, III, CF) e, portanto, inalienáveis. Podem ser regulados, mas não apropriados economicamente.
Hegel lembrava que a liberdade só se realiza nas instituições que protegem a universalidade. Ao entregar os rios à exploração privada, o Estado abdica de sua função de guardião do bem comum e converte-se em sócio de interesses particulares.
Essa inversão afronta:
a. O regime jurídico dos bens públicos;
b. O direito fundamental de ir e vir (art. 5º, XV, CF), ao condicionar a navegação a tarifas;
c. A finalidade estatal, que passa a financiar privilégios em vez de proteger o coletivo.
2. A equação perversa
O decreto prevê que 80% da remuneração das concessionárias virá de recursos públicos e apenas 20% de tarifas sobre cargas. Resultado: o contribuinte financia, o concessionário lucra e o produtor paga pedágio.
Não se trata de delegar serviços auxiliares (dragagem, sinalização), mas de converter o próprio rio em fonte de receita privada. É a caricatura do que Aristóteles chamava de idion — o interesse particular travestido de universal.
Além de imoral, pode configurar improbidade administrativa (Lei 8.429/92): prejuízo ao erário, violação a princípios e favorecimento indevido de particulares.
3. O candidato natural
O edital sairá em 2026, mas o jogo já começou. É plausível que a JBS, “faz-tudo” de governos petistas, surja como candidata natural. Não porque haja prova, mas porque no Brasil a lógica do poder é repetir a aliança entre governo e oligopólios, sustentada por dinheiro público.
Nietzsche chamaria isso de “eterno retorno”: a incapacidade de superar os próprios vícios.
4. Rios como mercadoria
Os rios da Amazônia são mais do que corredores logísticos: são símbolos de soberania e memória coletiva. Transformá-los em mercadoria é alienar a herança comum.
Burke advertia que civilizações só se preservam quando respeitam sua continuidade histórica. Tocqueville lembrava que democracias podem se converter em tutelas disfarçadas de liberdade. Ao conceder rios, o governo centraliza em si prerrogativa que não lhe pertence — e a repassa a grupos privados.
5. O paradoxo da modernização
As embarcações de pequeno porte foram poupadas — mas não se sabe por quanto tempo, já que a isenção depende apenas do decreto e poderá mudar no edital. Enquanto isso, o agronegócio enfrentará pedágio interno, somando-se às tarifas impostas por Trump.
O contribuinte paga nos impostos; o produtor, no pedágio. Montaigne já ironizava: nada é mais ridículo do que pagar caro por aquilo que a natureza nos deu de graça.
6. Direito de ir e vir
A Constituição assegura o direito de locomoção. Mas, ao entregar a gestão a concessionários, o Estado transfere a eles o poder de condicionar a navegação comercial.
O direito de ir e vir permanece formalmente intacto, mas, como dizia Hegel, liberdade formal não é liberdade real. Se atravessar o rio depende de pagar tarifa a um privado, o direito universal se converte em privilégio.
7. Hidrovia pública x infraestrutura privada
Modernização é necessária, mas deve respeitar limites. O Estado deve manter as hidrovias como patrimônio gratuito, cuidando da segurança e da sinalização.
À iniciativa privada cabe investir em terminais, canais artificiais e hidrovias paralelas, com capital e risco próprios. Como ensinava Adam Smith, o mercado só é saudável quando não há privilégios exclusivos.
O decreto, porém, entrega bens comuns a concessionárias subsidiadas pelo Tesouro. Não é parceria: é captura.
8. Soberania e responsabilidade
Aristóteles definia justiça como dar a cada um o que lhe é devido. Ao povo não se deve a cobrança pelo rio que já é seu, mas a garantia de que a liberdade de circulação não se tornará mercadoria.
Soberania não é slogan: é responsabilidade concreta. Sem isso, o Brasil continuará proclamando soberania nos palcos internacionais e negando-a nas margens da Amazônia.
9. O mar territorial como limite
Se essa lógica for normalizada, amanhã será aplicada ao mar territorial, onde a Constituição (art. 20, V) e a Convenção da ONU asseguram soberania plena. Cobrar pedágio sobre o mar seria privatizar a própria defesa nacional.
Hegel lembrava: o Estado deixa de ser sujeito da história quando transfere a particulares territórios naturais. Adam Smith advertia: monopólios corroem mercados.
10. Epílogo: quando o concessionário é também concorrente
E se o vencedor da concessão for um grande produtor? Terá dupla vantagem: reduzir seus próprios custos e cobrar tarifas dos concorrentes. Isso afronta a livre concorrência (art. 170, IV, CF) e a Lei 12.529/2011, que veda atos de concentração.
O CADE deveria intervir, mas a omissão é risco real. O resultado pode ser a formação de monopólios logísticos, sufocando médios e pequenos produtores.
Hegel já advertia: liberdade formal não basta. Adam Smith ensinava: monopólios destroem mercados. Se o decreto prosperar, pode unir o pior dos dois mundos — a alienação política e a captura econômica.
11. Pós-escrito: a cortina de fumaça
Enquanto os holofotes se voltavam ao julgamento de Bolsonaro e às tarifas de Trump, o decreto escorregava pelo Diário Oficial. Não foi acidente: foi cálculo.
Defensor da democracia
Apresenta-se como defensor da democracia, da soberania e da Amazônia, mas entrega, nos bastidores, o que diz proteger. Tocqueville já advertia que democracias podem virar tutelas disfarçadas de liberdade. Burke lembrava que a política que rompe com sua herança destrói a confiança social. Hegel ensinava que aparência sem essência é caricatura.
É exatamente isso que se vê: democracia invocada enquanto se restringe o debate; soberania proclamada enquanto se privatiza território; Amazônia celebrada nos palcos internacionais enquanto rios são leiloados no silêncio burocrático.
Não é cortina de fumaça: é método de governo. Oportunismo não é política: é degradação da política.
“O governo que chama de soberania o que vende, e de democracia o que silencia, já não governa em nome do povo, mas em nome do oportunismo.”
- Jorge Pinho
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - As crônicas refletem a visão, a opinião e a imaginação dos seus autores.
