
Boa Viagem - A praia que virou bairro e nunca deixou de ser mar
09/09/2025 -
Por Zé da Flauta*
Antes de existir bairro, antes de existir avenida, antes do Shopping Recife engolir tardes inteiras com ar-condicionado, havia apenas coqueiros e mar. A praia de Boa Viagem era caminho de pescador, terra de jangada empurrada na areia com o peito, de rezas miúdas sopradas na capelinha branca para que a viagem fosse, como o nome dizia, boa.
De olho no horizonte
As mães ficavam de olho no horizonte, procurando as velas que voltavam do mar, e os filhos corriam descalços atrás de conchas, como quem já ensaiava a vida corrida do futuro.
Cal e fé
A igrejinha, coitada, nem imaginava que um dia seria cercada por edifícios de vinte andares. Ali, no silêncio quebrado pelo vento, era ela quem guardava promessas: noiva pedindo casamento firme, marinheiro pedindo mar calmo, viajante pedindo proteção. Se hoje o recifense a vê quase espremida entre prédios, que não se engane: já foi ela soberana, dona absoluta da paisagem, rainha coroada de cal e fé.
Coco e concreto
E então vieram os primeiros “estrangeiros de dentro”: veranistas do centro da cidade que armavam barracas de lona e cadeiras de palhinha para passar fins de semana na beira do mar. A chegada do bonde e depois da estrada de ferro foi abrindo caminho para mais gente.
Arranha-céus tropicais
Nos anos 50, quando o Holiday, o Acaiaca e o Califórnia se ergueram feito arranha-céus tropicais, parecia que Boa Viagem tinha resolvido trocar o coqueiral por concreto. O bairro cresceu olhando para cima, mas sem nunca deixar de escutar o barulho do mar.
Teimosia
E é por isso que Boa Viagem emociona. Porque carrega duas memórias: a do chão de areia batida, do pescador rezando na igrejinha, e a do bairro moderno, cheio de restaurantes, prédios de vidro, ônibus lotados e feirinhas no calçadão.
Síntese do Recife
É uma síntese do Recife: mistura de fé e festa, de suor e elegância, de jangada e arranha-céu. Quem nasceu aqui se orgulha; quem vem de fora se apaixona. Porque Boa Viagem não é apenas um bairro: é um retrato da nossa teimosia em transformar areia em cidade sem nunca deixar de ser praia.
Até a próxima!
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.
