
É Findi - Rumo à Cidade - Abandono Social - Conto, por Maria Inês Machado*
13/09/2025 -
Sol escaldante. O chão rachado. O vento, às vezes, paralisa. Quando sopra, vem acompanhado do mormaço — não refresca: esquenta a alma. Olhei para o céu, procurando São José. Antes de plantar no roçado, rezei. Luzia também. As poucas chuvas no mês do santo protetor alimentavam as esperanças. Até quando? Não sei.
A esperança do sertanejo não morre: apaga e acende. A chama nunca vai embora. A lagoa transformou-se em lama. A vaca malhada tombou. Carniça para os urubus. Desolação, dor. A vontade de permanecer na terra não afogava minha fé. Reforçamos as rezas. Já vi a chuva chegar depois do dia de São José. Não choro, não lamento. Cabra do Sertão segura a foice, a enxada, trabalha. Arreboa o boi.
Os pés descalços caminham léguas. Na hora do almoço, Luzia ajeitou a carne seca com um pedaço de toucinho. A farinha ajudava. Por quanto tempo? Não sei. Luzia diz para falar com o coronel Belarmino. Lembra que, nas eleições, votamos nos candidatos que ele manda. Coisa de mulher. O negócio agora era arribar. Ir para a cidade. Encontrar trabalho.
Fui ao lugarejo. Consegui pagar o pau de arara. As crianças no colo. Viagem longa. Fui até a fazenda do coronel. Do alpendre, avistei dona Carmélia. — Ó, meu São José, tem piedade de nós. Manda chuva cair na terra. O povo da fazenda não tem para onde ir. Maria, mãe piedosa, intercede por nós. Amém.
A reza da dona da fazenda, a senhora Carmélia, era de coração. Ela, diferente do coronel, sempre dava um jeitinho de ajudar. Lúcia de Fátima, minha filha mais nova, afilhada do casal, caiu nas graças dela. A cocada feita no tacho de ferro por Raimunda, cozinheira boa da fazenda, era mandada para os meninos. E Lúcia sempre ganhava um pouco mais. Não atrapalhei a reza.
Voltei. Peguei a trouxa, acomodei a mulher e as crianças no pau de arara — e partimos. O cansaço pesava. Os meninos e Luzia dormiram. Acomodei a cabeça e dormi... Banhos no riacho. Água abundante. O roçado verde, nuvens no céu, promessa de chuva. Restavam os sonhos.
A seca trazia vergonha e dor. O dia amanheceu. Saí cedo. A vergonha queimava meu rosto. O corpo tremia feito vara verde. Tinha trazido o fole. Me ajeitei no canto da rua. Toquei. A cuia vazia esperava as moedas dos que passavam. Maria cantava música de “Marinês e sua Gente” e os meninos esticavam as mãos. Dor no peito e na alma. Os espinhos do mandacaru são algodão no corpo quando comparados com os espinhos da mendicância. Estes ferem, corroem. São ácidos destruidores na alma do sertanejo.
No fim da tarde, o apurado era pouco. Mas dava para comprar algum alimento. Outro hóspede da rua se sentou ao lado, com a mulher e os filhos. Puxou conversa. Tirou a gaita do bolso e tocou. Por um instante, esqueci o pedaço de chão onde nasci. Conversa boa. Combinamos tocar juntos. Luzia conseguiu trabalho. Cozinhava. E, no fim do mês, arrumava um dinheirinho.
Para esquecer o torrão querido, cantava enquanto trabalhava. Parecia um pássaro cantador. O dono da casa escutou a voz de Luzia. Falou com a mulher. Fez a proposta: ele tinha um bar. Nos fins de semana, gente cantava e tocava por lá. Luzia falou comigo. Fiquei desconfiado, mas calado. Combinei com meu amigo da gaita de visitar o local. Acordo feito. Escolher um dia: sábado ou domingo. Tinha os filhos para cuidar. Luzia escolheu o sábado. Nas calçadas, mesmo com o cheiro ruim por falta de banho diário, havia gente camarada. O corpo fede, mas o coração tem cheiro de alfazema.
Começou o novo emprego. Fui junto. Não largo do pé. Conversa vai, conversa vem, meu fole entrou em cena. A gaita do amigo não ficou esquecida. Contrato de boca. O dinheiro começou a entrar. Saímos das calçadas. Fomos morar numa casa simples. Pequena, mas limpa. O amigo também foi morar perto. As noites de cantoria no bar continuavam. Arranjei uma escola do governo para os meninos. Criança com livro na mão, sorriso no rosto. São José não esqueceu da gente. A chuva não veio para o Sertão, mas a vida na cidade floresceu. E ainda tem quem diga que vida de retirante é penosa.
— Manoel! Manoel! Acorda! O caminhão já chegou. Hora de descer.
— Descer para onde, Luzia?
— Do pau de arara. O motorista está afobado.
Cocei os olhos. O sonho acabou.
As calçadas sujas. Miséria! Fome, mendicância.
Dor na alma. Abandono Social.
*Maria Inês Machado é psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Intervenção Psicossocial à família. Possui formação em contação de histórias pela FAFIRE e pelo Espaço Zumbaiar. Gosta de escrever contos que retratam os recortes da vida. Autora do livro infantojuvenil 'A Cidade das Flores'.
