
As aventuras de Cacimba 4 - O lobisomem que virou cantador
13/09/2025 -
Por Zé da Flauta*
Foi numa noite de lua cheia em São Bento do Una que Cacimba viveu um dos seus encontros mais assombrosos. A cidade estava quieta, só os grilos falavam. O povo já sabia, noite de lua cheia era noite de bicho solto, e naquela região corria a lenda de um lobisomem triste, que não fazia mal a ninguém, mas uivava com uma melodia tão melancólica que fazia até as pedras chorarem.
Cacimba, como sempre, ignorou os avisos. Subiu o serrote com um candeeiro na mão e os dois macaquinhos acordados nos ombros. Simão dizia:
— Hoje não, Cacimba. Hoje o medo tem garras.
Mas Sebastião sussurrava:
— Vai, homem. O que é um lobisomem diante de quem já enganou o Papa?
No alto da mata, Cacimba viu: era um homem peludo, olhos de fogo manso, agachado numa pedra, chorando. Chorando de soluçar.
— Tu és o lobisomem?
O bicho não respondeu. Só ergueu os olhos tristes.
— Fique sabendo que não vim com prata nem com rezas. Vim com conversa.
Foi então que o lobisomem falou, num fio de voz:
— Eu era cantador, Cacimba. Tinha viola, fama e moça apaixonada. Mas um dia, cantei na noite errada, numa encruzilhada errada, e um espírito me rosnou uma maldição:
“Agora, tua música vai doer.” Desde então, viro bicho nas noites de lua cheia. E uivo. Uivo canções que só o mato entende.

Cacimba se sentou ao lado do bicho, tirou um pedaço de rapadura do bolso e disse:
— Pois tu vai cantar de novo. Mas não mais pro medo. Vai cantar pra fé. A tua dor vai virar aboio. A tua maldição, repente.
O lobisomem arregalou os olhos.
— E se o povo me enxotar?
— Então canta de máscara, canta com o rosto coberto de couro e as mãos cheias de poesia. Diz que és um profeta do sertão profundo. Diz que é neto do vento e afilhado do luar.
Na semana seguinte, apareceu na feira o Cantador Encoberto. Ninguém sabia quem era. Mas suas modas eram tão tristes e tão bonitas que até o bode do açougueiro chorava.
Teve mulher que se apaixonou sem ver o rosto. Teve cego que jurou que enxergou a alma dele.
Cacimba, claro, ouvia de longe e sorria, com os dois macacos cochichando:
— A mentira mais bonita é aquela que vira verdade no coração dos outros.
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.