
A era da energia livre: Filosofia, Verdade e o fim da escassez
15/09/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Advertência: para um tempo que ainda não chegou
Este não é um texto para consumo rápido. Ele fala de uma transição que não é apenas técnica, mas espiritual: a superação do paradigma da escassez. Talvez só seja plenamente compreendido por aqueles que já pressentem o porvir.
Se hoje soar excessivo, que assim seja. A verdade muitas vezes chega como perturbação antes de se tornar evidência. Guardem-no como semente: quando a energia for livre, que seja lembrado não como profecia, mas como fidelidade.
Epígrafe: “Não é a escassez que nos domina, é a crença nela que nos mantém servos.” — inspirado em Viktor Frankl
2. Dedicatória
À humanidade inquieta e luminosa; aos que clamam por sentido e aos que silenciosamente acolhem a verdade. Dedico estas páginas como o beija-flor dedica sua gota d’água ao incêndio: não para apagar o mundo, mas para afirmar que não é irrelevante quem escolhe servir.
3. O paradigma que nos molda: a escassez
Vivemos sob a hegemonia de um paradigma que nos ensinou a ver carência em tudo. Desde a economia clássica até a termodinâmica, a lógica é a mesma: pouco para muitos.
Antiguidade
Na antiguidade, havia abundância de recursos; o que faltava eram meios técnicos. Foi a Revolução Agrícola que inaugurou o controle do excedente e, com ele, a dominação. A escassez deixou de ser um dado temporário e tornou-se um instrumento civilizacional.
Foucault mostrou que o poder nasce da gestão dos fluxos; Hegel, que o desejo de reconhecimento se transforma em exclusividade; La Boétie, que há servidão voluntária. Buber revelou que a lógica da escassez substitui a relação “Eu-Tu” pela relação “Eu-Isso”.
A crítica aqui não é ao capitalismo ou ao socialismo em si, mas ao paradigma simbólico da escassez, que atravessa ambos. Nosso maior bloqueio não é técnico, mas espiritual.
4. A Ontologia da Escassez: como fomos ensinados a carecer
A economia moderna ergueu-se sobre um axioma que parecia absoluto: os recursos são finitos, os desejos infinitos. Daí nasceu a pedagogia da competição e do sacrifício. Mas convém perguntar: a escassez é uma condição ontológica do mundo ou uma construção histórica?
Origem
Na origem, o ser humano não vivia sob esse dogma. Como nômades, encontrávamos abundância em rios, florestas e frutos. A escassez era episódica, não estrutural. Foi a Revolução Agrícola que mudou a lógica: o excedente tornou-se poder, e o medo de não ter, instrumento de controle. Foucault mostrou como o poder nasce da administração dos fluxos. A escassez foi, assim, menos descoberta do que invenção.
A modernidade
A modernidade consolidou esse paradigma com a segunda lei da termodinâmica: todo sistema fechado tende à entropia, à dispersão da energia útil. O gelo que derrete, o perfume que se espalha, a bateria que se descarrega ilustram esse princípio. Mas a vida mostra que sistemas abertos — como a Terra, alimentada pelo Sol — podem criar ordem local exportando desordem ao ambiente. E a própria cosmologia sugere que o universo pode não ser fechado: a expansão acelerada aponta para fluxos inesgotáveis.
Entropia significa que criar ordem sempre exige esforço, enquanto perdê-la é espontâneo: gasta-se energia para formar um cubo de gelo, mas basta esperar para que ele derreta; trabalha-se para caçar e produzir alimentos, mas deixá-los apodrecer é automático.
Tradições ancestrais
As tradições ancestrais intuíram essa abundância: Brahma respira o cosmos, o Tao flui sem esforço, o Tzimtzum cria espaço para a vida, Platão e Aristóteles apontam a plenitude no inteligível e na virtude.
A escassez, portanto, não é apenas cálculo econômico: é estado de espírito. Buber advertia que ao transformar o “Tu” em “Isso” degradamos a relação. Romper com a ontologia da escassez é libertar-se do medo e assumir a responsabilidade da abundância.
5. O sistema financeiro como estrutura de controle
Na ausência de energia livre, o sistema financeiro tornou-se engrenagem invisível de controle. O dinheiro deixou de ser instrumento e virou medida de sentido.
Nietzsche previu novos deuses após a morte de Deus; o mercado assumiu esse papel. Obedecemos ao crédito e ao juro não por ética, mas por medo.
Morin chama isso de metástase do pensamento simplificador: reduzir a vida a números. O capitalismo venceu não só por eficiência, mas porque manipula a alma pela escassez simbólica.
Mas esse poder só existe enquanto a energia é cara. Quando a matriz energética for gratuita, o dinheiro perderá sua aura.
6. A revelação da abundância: tecnologias que desafiam o dogma
A fusão nuclear controlada, já testada em projetos como ITER e Helion Energy, promete energia limpa e quase ilimitada. Pesquisas em reações de baixa energia (LENR) sugerem avanços ainda mais radicais. As células de hidrogênio descentralizam a produção, tornando cada casa e carro potenciais geradores.
Essas tecnologias minam o monopólio simbólico da sobrevivência. A abundância energética, por sua natureza, escapa ao controle centralizado.
6.1. Ética, política e pós-capitalismo ontológico
Se a energia for livre, o trabalho deixa de ser mera sobrevivência e passa a ser criação; a política, gestão de símbolos e relações; a ética, partilha do muito.
Surge o que podemos chamar de pós-capitalismo ontológico: uma economia fundada não no medo da carência, mas na confiança na abundância. O valor passa a ser definido pelo sentido, não pela escassez.
6.2. O desafio final: poderíamos suportar a abundância?
A abundância sem consciência gera decadência. Roma não caiu pela falta, mas pelo excesso sem propósito.
Pascal já dizia: “Toda a infelicidade vem de não saber ficar em repouso num quarto.” A energia livre exigirá não apenas novas técnicas, mas novas almas.
A liberdade energética só será bênção se acompanhada de maturidade espiritual — recipientes capazes de conter a luz sem se romper.
7. A caverna atual: controle digital, créditos de carbono e moedas estatais
A promessa de sustentabilidade vem sendo capturada para reforçar o controle. Créditos de carbono e moedas digitais estatais criam novos mercados da culpa e instrumentos de vigilância.
Na nova caverna de Platão, as sombras são algoritmos, e os grilhões, confortáveis. Orwell já advertira: a manipulação da linguagem antecede a destruição da consciência.
A abundância assusta porque exige responsabilidade. Muitos preferem a previsibilidade da escassez.
8. Exortando a um novo ethos: sabedoria para a abundância
A verdadeira revolução não é energética, mas ética. A abundância precisa de um ethos baseado na virtude aristotélica, na harmonia de Lao-Tsé, na relação de Buber, na retidão de Confúcio, na humildade estoica.
A Cabala chama isso de Tikun Olam: restaurar os recipientes para receber a luz. Sem esse ethos, a energia livre apenas alimentará novas tiranias.
9. Conclusão: o destino não é a escassez, é a escolha
Estamos diante de uma bifurcação. Podemos usar a energia para libertar ou para escravizar.
A escassez foi uma fase da consciência. Superá-la exige engenheiros, mas também filósofos, poetas e místicos. O futuro não é consequência: é escolha.
“Que sejamos dignos do dom que se aproxima.”
10. Epílogo — o último muro está dentro
A escassez nunca foi um dado, mas um projeto simbólico. Hoje, à beira de uma nova matriz energética, o véu cai: a energia pode ser livre, mas não será redenção automática — será a prova.
Prometeu confiou demais nos homens ao entregar o fogo. Talvez ainda estejamos aprendendo a merecê-lo.
Se a energia for livre, que sejamos guardiões dela, não consumidores vorazes. Pois a diferença não está no fogo, mas na alma de quem o segura.
* O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - As crônicas refletem a visão, a opinião e a imaginação dos seus autores.
