
Bolsonaro é peixe pequeno - Até Deus já foi julgado no Brasil em plena ditadura
18/09/2025 -
Por Antonio Magalhães*
Engana-se quem pensa que o julgamento de Bolsonaro e apoiadores pelo STF foi o de maior dimensão na justiça brasileira. Em Boi Pintado, no agreste pernambucano, aconteceu o surpreendente Julgamento de Deus. Foi colocada no banco dos réus, nos anos 60, a maior entidade de todas as religiões monoteístas, como o cristianismo, judaísmo e islamismo. E, no nosso caso, o símbolo mais relevante da civilização ocidental e acima de todos os crentes, como gosta de dizer um ex-presidente.
Ficção
O caso é descrito, como ficção, claro, pelo jornalista e escritor pernambucano José Nivaldo Junior no livro ‘O Julgamento de Deus’. O processo judicial, segundo os personagens, foi um desafio e uma reação da esquerda ao regime militar que comandou por 21 anos o destino do Brasil.
A oposição aos militares na pequena Boi Pintado, uma espécie de Macondo nordestina, formada por personagens curiosos e alguns reais, quis comemorar a seu jeito o 7 de setembro, data nacional. Com o insólito evento, os pintadenses conseguiram dar uma dimensão planetária ao fato, como afirma o autor, revelando uma crítica inteligente a ditaduras, seja de farda ou toga.
Julgamento do Todo Poderoso
O julgamento do Todo Poderoso – que de algum modo banaliza Deus – recrutou entre os habitantes de Boi Pintado um corpo de sete jurados, um promotor de acusação sem formação jurídica, um advogado de defesa com conhecimento de leis por ouvir dizer e um juiz que se daria mal até como árbitro de futebol. A criatividade do autor permite ao leitor conhecer histórias fictícias ou não da política nacional e da religião católica.
A iniciativa
A iniciativa de Boi Pintado mexeu com a república dos militares, que quebraram a cabeça em Brasília para saber como agir, permitindo, no final das contas, que acontecesse o julgamento. O caso também chegou no Vaticano, e, como relata o autor, a autoridade suprema da Igreja, o Papa, não se opôs, não permitindo, contudo, que o controverso arcebispo de Olinda e Recife da época fosse ao tribunal, para não dar maior dimensão institucional.
Pontífice
Para o Pontífice, segundo o autor, o júri era um mero ato de expressão política de jovens na data da Independência do Brasil. Além do mais, para aliviar a controvérsia e audácia de julgar o Todo Poderoso, a promotoria do caso argumentou que quem estava como réu era o Deus do Antigo Testamento e não o do Novo.
Modelo
Tomando como modelo de acusador um militante da esquerda, amigo real do autor, José Nivaldo Junior narra nos capítulos finais do seu livro os crimes que Deus é acusado, de acordo com a promotoria de Boi Pintado.
“Deus. O Senhor Deus, criador do céu e da terra, de tudo o que existe é o maior criminoso da História, o ser mais cruel de que se tem notícia”, começa o promotor de capa preta nos ombros, impactando a plateia. “Ele é fonte de tudo o que existe, é responsável por todo mal, todo sofrimento, todas as guerras, golpes militares, sequestros, torturas, prisões políticas, ameaças, espancamentos e até xerifes”, diz o acusador arrancando risos. E indaga: “de onde tirei essas conclusões? Tirei da Bíblia”, enfatiza.
Acusar
Depois de acusar Deus pelos erros desde a Gênese narrada na Bíblia, o promotor do julgamento divino se dirige ao júri: “Pensam que ficou só nisso. Requeiro a condenação do Senhor Deus de Israel por 2.270.317 assassinatos identificados pela promotoria no Antigo Testamento. Crimes indiscutíveis e confessados em milhares de anos. Perpetrados que sejam diretamente pelo próprio Deus ou por ordem sua ou com seu consentimento. Foram dois milhões, duzentos e setenta mil trezentos e dezessete assassinatos, incluído o de Abel, morto por Caim”.
Livro
Fora do livro e para atualizar a conta, sabe-se que o número revelado pelo acusador de Boi Pintado sobre os supostos crimes de Deus é muito baixo diante das mortes promovidas conjuntamente pelos maiores tiranos do século 20, os comunistas Mao Tse Tung e Stalin e o nazista Hitler, com um saldo em torno de 120 milhões de assassinatos.
Plateia
A plateia do julgamento de Deus em Boi Pintado também ouviu os argumentos da defesa do Todo Poderoso. Segundo o advogado do ouvi dizer, “o Livro Sagrado não é prova de nada na justiça terrena, é uma questão exclusivamente de fé. E não podemos condenar nenhuma pessoa ou entidade com base em crenças. Temos que nos apoiar na verdade dos fatos. Só a verdade devidamente comprovada pode servir de fundamento para uma sentença condenatória de qualquer natureza”.
A defesa
A defesa enfatiza a falta de provas reais e prossegue: “Não existe crime sem vítima e muito menos sem autor. A promotoria não foi capaz de provar neste processo a existência de uma vítima sequer. E faço questão de chamar também a atenção para este ponto: nada foi demonstrado sobre o réu, sequer sua existência. Ora, se a acusação não provou que o réu existe, como quer que lhe imputemos uma condenação, mesmo que simbólica”.
Ouvidas a acusação e a defesa, sem provas reveladas além das Escrituras Sagradas, os jurados se recolheram para o veredito. O resultado da decisão do júri foi surpreendente, mas você leitor deste texto só saberá dele se adquirir o livro na Amazon.
Extrapolações legais
Em tempo de justiçamentos e extrapolações legais, o livro de José Nivaldo Junior foi premonitório em levar irrealidades a julgamento em 2014. Ainda bem que dessa vez em forma de ficção. É uma leitura divertida no melhor estilo do realismo mágico latino-americano e bem instrutiva. É isso.
Antonio Magalhães é Jornalista
