
Memoriais do Moscouzinho, por Natanael Sarmento*
18/09/2025 -
Dedico a Abelardo, Arruda, Byron, Calado, Carlos (Bel), Délio, Leonardo, Morse e Pajeú e a todos amigos impossibilitados de brincar na “loteria” mórbida do próximo freguês do bar a ser sepultado.
O boteco
O nome verdadeiro do Moscouzinho era “Bar Transamazônica”. O boteco foi batizado socialmente por “Moscouzinho” e assim ficou. Porque frequentado pela esquerda etílica nos tempos da ditadura. Aquele antro insalubre não resistiria fiscalização da vigilância sanitária, se houvesse. Terceira categoria na comida e na bebida.
Música
Música das buzinas e climatização da poluição dos veículos. Mas fazia sucesso. O proprietário Bel atendia de bermuda e camiseta e se juntava com a freguesia cativa nas rodas de porrinha e beberagem. Ponto de sociabilidade, encontro de amigos e gente simples do povo e mais que isso, organizador coletivo de time de futebol, troça carnavalesca, debates sobre tudo e, obviamente, beberagens homéricas.
O time
Lebreia nome de cachaça e no localismo linguístico dos carros velhos da praça de táxi da calçada do bar da maioria dos atletas dessa fantástica equipe selecionada entre arquirrivais torcedores do Sport, Náutico e Santa Cruz e Central. O personagem futebolista alcóolico Coalhada do Chico Anysio expressa com exatidão a tipologia dos atletas do “Lebreia Futebol Clube”. Nunca venceu partida alguma. Bebia-se muito, jogava-se pouco.
Mas os atletas se divertiam, caíam de propósito. Receber o atendimento do massagista que socorria com analgésico veterinário e garrafa de cachaça. Partida memorável em Aldeia. Abrimos o placar. Perdemos de 11 a 1. Culpamos o juiz e o goleiro frangueiro. O “Príncipe de Galhas” levava mais gols do que chifres.
A Troça
No tríduo momesco Moscouzinho se agitava. Sábados do Zé Pereira a Troça “Nós Sofre, Mas nóis Goza” da vizinha Livro 7 do Tarcísio emendava a folia do “Galo da Madrugada”. Os papudinhos achavam pouco. Criaram a “Troça Galinha da Noite” a farra continuava até o domingo no bloco da Saudade saindo da Maciel Pinheiro. Mas muitos foliões não aguentavam a maratona. E sequer se levantavam das mesas do Moscouzinho para acompanhar o curtíssimo percurso de ida e volta na esquina, na rua do Hospício.
Desfile da Galinha
Desfile da Galinha da Noite foi o do concurso da “rainha”. Alguns papudinhos de perucas femininas, maiôs e biquínis desfilaram na passarela improvisada na calçada da rua do Riachuelo. A travesti profissional Madona ganhou a coroa. Nessa brincadeirinha muito galo do esporão afiado soltou a franga, Evoé, viva o carnaval!
Escritório
O poeta, escritor e advogado Leonardo T. Cavalcanti foi o mais assíduo e icônico “sócio” do Moscouzinho. Transferiu a banca advocatícia do edifício Círculo Católico para o bar, com seu telefone fixo. Atendia a vasta clientela e escrevia romances e poesia. Sob o pseudônimo “Zezito do Potengi” legou obra pornográfica. Diversas delas emolduradas nas paredes dos bares da Boa Vista do seu périplo etílico. Com a morte do proprietário, junto com Morse Lira garantiram materialmente o funcionamento a cargo da viúva até o boteco ser vendido para uma ótica.
Academia democrática
Naquela universidade popular se debatia cinema, teatro, literatura, história, política, filosofia, direito com ou sem conhecimento todos tinham direito a voz naquela ágora. Diferia da democracia dos gregos. Não havia vedação à participação de mulheres, mas eram poucas as papudinhas, Conceição, Socorro, Maria...
Germanófilo
Certo tipo que usava roupa branca e anéis de médico e da maçonaria suscitava suspeita. Matriculado no Centro Cultural Brasil Alemanha “para ler Max Webber no original” como ele dizia. Pois o germanófilo protagonizou estrepitoso e antológico debate político digno dos anais acadêmicos. Afinal, tratava-se da questão fundamental e perpétua porquanto constitutiva do poder: a relação entre meios e fins da política, anterior aos conselhos de Maquiavel e sempre atual.
Via prussiana
O tipo deitava falação sobre a “via prussiana”, modelo político estatal autoritário militarista de busca de eficácia, em detrimento das liberdades democráticas. Enaltecia Bismark na unificação e desenvolvimento do capitalismo na Alemanha.
Tendo que o tínhamos sob suspeição, a mensagem foi entendida como ardil de cabotino. Como defesa reflexa ou envergonhada da ditadura. A ditadura já respirava por aparelhos. Nas ruas e jornais as críticas à corrupção, inflação e malogrado do “Milagre” do Delfim. A roubalheira dos “petrodólares” do endividamento externo e depósitos secretos em bancos suíços. A democracia do Moscouzinho não registra sopapos, faltou pouco desta vez.
Contestação
Contestamos pela inadequação da carapuça de Bismarck no século XIX na cabeça da Mula Sem Cabeça brasileira do século XX. Recorremos a Aristóteles da distinção essência e aparência. Focinho de porco parece mas não é tomada. Entre Brasil/Alemanha havia distintas propriedades fundamentais.
Da filosofia saltamos à panfletagem. Estupidez comparar o modelo alemão com o brasileiro. “O militarismo brasileiro tem gerência ineficaz, corrupta, concentradora e excludente! Milhares de pessoas na miséria. Meia dizia de nababos”.
Réplica
O anel da maçonaria enumerou as “grandes obras do Brasil potência” e fechou citando Joãozinho Trinta: “pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”.
Tréplica
Aula magna de ironia a tréplica do professor Piauí. Começou com exaltações nacionalistas capazes de fazer inveja ao Major Policarpo Quaresma defensor do Tupi Guarani para língua oficial do Brasil. Retomou a linha da filosofia da distinção da natureza intrínseca e imutável das coisas com as formas aparentes, acidentais e mutáveis.
Filosofia, política e botânica
Embaralhou filosofia, política e botânica. - “Se há traço intrínseco e continuado da política brasileira é na sucessão de golpes de Estado”. E elencou dezenas. Concluiu dizendo: “a via brasileiríssima “não é chinesa, cubana, ou prussiana, mas cagateira! A Eugenia Disentérica - nome científico do indivíduo vegetal conhecido como cagateira - traz a essência nacional- brasileira. É perfeita enquanto representação semiótica do signo com o significado [...] Árvore nativa. Avantajada.
Troncos
Seus troncos são tortuosos, suas cascas grossas apresentam fissuras salientes! Suas folhagens verdes e seu fruto amarelo evocam o verde-loro da flâmula. A cagaita - fruta- produz licores, sucos, sorvetes, geleias e doces... [...] Essa fruta deve ser comida com moderação. É um perigo para os comilões pantagruélicos! Ela tem propriedades laxantes”.
*Natanael Sarmento é professor e escritor. Do Diretório Nacional do Partido Unidade Popular – UP.
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