
As aventuras de Cacimba 5 — Cacimba e seu calvário em Nova Jerusalém
20/09/2025 -
Por Zé da Flauta*
Era Semana Santa, e o céu do sertão estava de um azul tão límpido que dava pra ver os pecados subindo. Cacimba, que andava pelos arredores de Fazenda Nova, decidiu assistir à famosa encenação da Paixão de Cristo em Nova Jerusalém. Queria ver com os próprios olhos aquele espetáculo grandioso, cheio de luzes, cavalos, coros e multidão. Mas, como sempre, ele não foi apenas ver. Foi ser.
Chegou cedo, comprou uma pamonha de forno e uma água benta disfarçada de garapa. Juntou-se ao povo e esperou. Mas o que ninguém esperava era o anúncio feito minutos antes da entrada triunfal do Cristo:
— Senhoras e senhores, por motivo de força intestinal, o ator principal está impossibilitado de subir ao Calvário.
Confusão. Choradeira. O público inquieto. Os organizadores desesperados. Foi então que, de dentro do povo, surgiu a voz firme de Cacimba:
— Eu faço.
Silêncio.
— Eu fui Jesus três vezes no sertão de Bodocó. Já carreguei cruz em procissão de verdade e curei reumatismo com um gole de vinho seco. Tenho as costas largas e os pés rachados. Sirvo.
O diretor, sem opções e já com o espetáculo atrasado, concordou. Vestiram Cacimba com as túnicas, ajustaram a coroa, colocaram um microfone escondido no peito. Os macaquinhos, Simão e Sebastião, estavam em polvorosa.
— Tu vai fazer blasfêmia! — gritava Simão.
— Tu nasceu pra esse papel! — gritava Sebastião.

A peça começou. E que peça! Nunca se viu um Jesus tão sertanejo. Na Santa Ceia, ao invés de vinho, Cacimba ergueu uma cuia de catuaba e disse:
— Este é o sangue da alegria. Bebei todos, mas devagar, que é forte.
Na cena do deserto, improvisou uma conversa com um bode tentador, que representava o diabo. Fez o público gargalhar. Mas o ponto alto foi mesmo a crucificação.
Amarraram Cacimba na cruz cenográfica, levantaram-no alto, e ele, com os braços abertos, murmurou:
— Pai, perdoai, mas pelo amor de Deus, não deixem cair o prego da mão esquerda que tá frouxo.
Nesse momento, Simão ficou em pé no ombro e tapou os olhos. Sebastião, empolgado, começou a gritar feito um pregador:
— Esse homem é o verdadeiro filho do sertão! Nasceu debaixo de um umbuzeiro e morreu numa cruz de MDF!
As crianças choravam. As beatas desmaiavam em silêncio. E o padre, que assistia tudo, já preparava o sermão do domingo baseado na performance de Cacimba.
Ao final, foi ovacionado. Ganhou flores, castanhas de caju, um queijo coalho e o apelido que nunca mais largou:
“Cristo de Bodocó”.
— E essa história é verdade, Cacimba? — perguntaram depois.
— Só perguntando a Pilatos.
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.
