
Ensaio - O mercado do oportunismo político: como o progressismo globalista vende culpa e compra votos
25/09/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
“Quem não aprende a esquecer, nunca aprenderá a viver.”
- Nietzsche
1. Preâmbulo — O pedido vazio
Mais uma vez, o palco da política mundial foi ocupado por uma encenação: a Dinamarca decidiu pedir desculpas às mulheres da Groenlândia por uma suposta política de “esterilização forçada” nas décadas de 1960 e 70.
O gesto percorreu o mundo em manchetes. Foi celebrado por progressistas como ato de coragem moral, sinal de sensibilidade histórica, exemplo de liderança humanista.
Mas basta um olhar menos ingênuo para perceber o teatro. Não houve reparação concreta. Não houve mudança institucional. Não houve sequer a pretensão de enfrentar problema algum.
Política contemporânea
Houve apenas aquilo que se tornou a marca registrada da política contemporânea: o blá-blá-blá simbólico, embalado pela retórica progressista que transforma qualquer passado em moeda política do presente.
Que justiça há em pedir desculpas por escolhas médicas e culturais que foram universais à época? Que sentido há em converter um movimento global — a revolução sexual e o entusiasmo pelo controle da natalidade — em “crime colonial” seletivo, convenientemente explorado meio século depois?
E mais: se toda prática histórica pode ser reinterpretada como opressão, o que nos garante que as nossas próprias escolhas de hoje — contraceptivos, consumo, biotecnologias, algoritmos — não serão alvo de pedidos de desculpa amanhã?
Será que a política tem vocação para ensinar a aprender com o passado? Ou apenas para usá-lo como palanque?
2. O espírito da época — A revolução sexual e a mentalidade hedonista
A década de 1960 não foi dinamarquesa, nem groenlandesa. Foi mundial. O mundo inteiro se embriagava com a promessa da pílula anticoncepcional e do DIU. A ciência oferecia, pela primeira vez, a separação entre sexo e reprodução. Era a aurora da liberdade sexual, a emancipação feminina, o triunfo do prazer reconciliado com o controle racional da natalidade.

Novo paradigma
Governos, agências internacionais e médicos celebravam o novo paradigma. O Banco Mundial, a ONU, instituições filantrópicas: todos financiaram programas de contracepção como solução para a pobreza e a explosão demográfica. A adesão ao planejamento familiar não era vista como opressão, mas como progresso.
Transformar hoje esse espírito de época em opressão colonial é uma falsificação histórica. É julgar a festa com os olhos do funeral.
3. A falácia do presentismo — Julgar o passado com lentes do presente
Aqui se encontra a primeira grande falácia: o presentismo. O vício de reinterpretar o passado com critérios do presente, condenando práticas que, à época, eram não apenas aceitas, mas exaltadas como libertadoras.
O médico paternalista dos anos 60, que aplicava um DIU sem explicar detalhadamente seus efeitos, não se via como violador, mas como benfeitor. Se aceitarmos o critério progressista atual, toda a medicina do século XX seria criminosa: cirurgias sem consentimento informado, choques em manicômios, internações compulsórias, tratamentos forçados contra tuberculose ou lepra.
O presentismo não ensina a história: ele a deforma. Em vez de compreender, acusa. Em vez de iluminar, obscurece. Converte cada época em réu de um tribunal eterno.
4. O sofisma da culpa coletiva — Quando o passado se converte em capital político
Um pedido de desculpas estatal nunca é gratuito. É uma operação política calculada. Ele cria um nós culpado diante de um deles vitimizado. É a lógica da culpa hereditária: ainda que ninguém vivo hoje tenha participado dos fatos, o Estado fala como se todos fossem responsáveis.
E o que se ganha com isso? Capital moral, manchetes favoráveis, dividendos eleitorais. A dor do passado é transformada em espetáculo para consumo imediato. O perdão não é buscado, a reconciliação não é oferecida: apenas a virtude performática que alimenta a indústria do politicamente correto.
La Boétie denunciava a servidão voluntária. Tocqueville advertia contra a tutela democrática. Ambos entenderam que o poder se perpetua criando dependência. Hoje, a dependência não é apenas material: é simbólica. É a dependência da culpa.
5. A comparação necessária — Dinamarca e China
O contraste ilumina o ridículo. Na China, a política do filho único foi oficial, explícita e brutal: abortos forçados, esterilizações compulsórias, multas arrasadoras, infanticídios. Foi coerção nua e crua, escrita na lei e imposta pelo regime.
Na Dinamarca/Groenlândia, houve paternalismo médico, sim; descaso cultural, talvez. Mas não houve campos de esterilização. Não houve soldados arrastando mulheres para hospitais. Não houve política oficial de repressão demográfica.

Pedidos de desculpa
E, no entanto, é contra a Dinamarca que se multiplicam pedidos de desculpas e manchetes globais. A China permanece blindada, protegida pelo silêncio cúmplice dos mesmos que se erguem como paladinos da virtude moral. É seletividade. É covardia. É oportunismo.
6. As falácias progressistas — Retórica, não justiça
Vejamos o arsenal:
a. Apelo à emoção — explora-se o sofrimento de algumas mulheres como se fosse destino universal.
b. Generalização apressada — casos isolados viram política sistemática.
c. Falsa analogia — Dinamarca comparada à China, como se fossem equivalentes.
d. Culpa coletiva — gerações inocentes pagam por atos que não cometeram.
e. Virtude performática — desculpas vazias convertidas em capital político.
São sofismas. São falácias. São instrumentos de retórica, não de justiça.
7. O papel civilizacional do tempo — Prescrição e esquecimento
O direito nos ensina que conflitos precisam ter fim. A prescrição e a decadência não são tecnicalidades: são pilares da civilização. Sem elas, viveríamos em guerra permanente, julgando mortos com juízes vivos e cobrando dívidas de inocentes.
Nietzsche lembrava: a vida exige esquecimento. Sem ele, a existência se torna insuportável. Aristóteles ensinava que a justiça não é vingança, mas equilíbrio. Montaigne advertia que a memória excessiva paralisa.
É essa a função do tempo: dissolver, encerrar, reconciliar. Sem esquecimento, não há paz. Sem limite, não há justiça.
8. Conclusão — Entre a memória e o ridículo
O pedido de desculpas dinamarquês não é ato de justiça: é ato de propaganda. Não fecha feridas, não educa, não reconcilia. Apenas recicla escolhas culturais universais — como o controle da natalidade e o hedonismo pós-guerra — em crimes seletivos do colonialismo.
A memória deve iluminar, não manipular. Deve ensinar, não dividir. O que se viu foi o contrário: a memória usada como palanque.
O verdadeiro ridículo não está nos anos 60, mas no presente. O ridículo é transformar o que foi celebrado como libertação em espetáculo de desculpas tardias. O ridículo é confundir justiça com encenação. O ridículo é o blá-blá-blá progressista travestido de virtude.

9. Epílogo — A indústria das desculpas
Se aceitarmos o jogo progressista, o futuro será uma sucessão de atos de contrição tardia. Pediremos desculpas pelos filhos que não tivemos, pelo prazer que buscamos, pelo consumo que abraçamos, pelas tecnologias que inventamos. Cada gesto humano será convertido em culpa retroativa, cada escolha cultural em crime coletivo.
Mas um mundo feito apenas de desculpas é um mundo sem futuro. Porque quem vive pedindo perdão ao passado esquece de construir o amanhã.
Verdadeira justiça
A verdadeira justiça não se faz com lágrimas de teatro nem com aplausos da plateia. Faz-se com verdade, com coragem e com a sabedoria de deixar o tempo cumprir seu papel de dissolver aquilo que não pode mais ser julgado.
Não é a desculpa que redime, mas o compromisso de não repetir. Não é o mea culpa performático que liberta, mas a memória sóbria que educa.
Entre a memória e o ridículo, só há um caminho digno: lembrar sem manipular, encerrar sem rancor, e seguir sem correntes.
Porque a política pode viver de desculpas. Mas a civilização só sobrevive com coragem.
10. Pós-escrito — Filosofia contra as sombras
Os pedidos de desculpas tardios, as manchetes infladas e as narrativas seletivas não seriam tão eficazes se não encontrassem terreno fértil: uma massa disposta a acreditar em qualquer clarão que lhe projetem na parede.
Filosofia
É aqui que a filosofia se torna urgente. Porque só ela tem a força de quebrar correntes invisíveis e ensinar que nem toda luz é verdade — muitas vezes é apenas reflexo manipulado.
Platão advertia que os homens da caverna confundiam sombras com realidade. Hoje, os projetores não são tochas acesas por escravos, mas os holofotes da grande mídia, manejados por amos que sabem o valor da contradição calculada e da indignação fabricada.
Verdadeira libertação
A verdadeira libertação não virá de desculpas performáticas nem de rituais coletivos de culpa. Virá do despertar de cada indivíduo, um a um, pelo exercício filosófico que nos arranca da massa e nos devolve à consciência.
Só assim deixaremos de ser plateia para nos tornarmos protagonistas. Só assim deixaremos de repetir o blá-blá-blá progressista para viver o silêncio fecundo da reflexão. Só assim sairemos da caverna — não para trocar uma sombra por outra, mas para finalmente ver a luz.
(*) O autor é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores. O Poder acolhe a diversidade de pensamentos e visões do mundo e estimula o contraditório democrático e respeitoso.

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