
Entre o corpo e a civilização: a saúde como espelho da captura social
26/09/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
Epígrafe
“Os povos perdem-se quando o indivíduo confunde o direito de viver com o direito de nada dever.”
— Jorge Henrique de Freitas Pinho*
1. Preâmbulo — a saúde como espelho da civilização
A saúde de um povo nunca é apenas um dado técnico ou estatístico: é reflexo da alma da civilização que a sustenta. O modo como cuidamos dos corpos enfermos revela nossa visão de humanidade, nossa ética de convivência e nosso conceito de bem comum. Quando um sistema de saúde entra em colapso, não é só a administração que falha: é a cultura que se desnuda diante do espelho.
Campo fértil
Portugal oferece um campo fértil para essa reflexão. A história da saúde portuguesa percorre o arco que vai da caridade religiosa ao universalismo constitucional, da dádiva limitada à expectativa ilimitada. Esse percurso, no entanto, não é apenas português: é o retrato de boa parte do Ocidente.
Sistemas universais
A questão central é clara: é possível sustentar sistemas universais, generosos e tecnologicamente avançados quando os recursos são limitados e as expectativas tendem ao infinito? Ou estaremos, como Roma no auge, construindo uma máquina de benefícios que terminará esmagada pela própria insaciabilidade?
Responder a essa pergunta exige filosofia. Pois a saúde não é apenas gestão orçamentária: é metáfora da civilização.
2. Da caridade ao universalismo
No Antigo Regime, o cuidado com a saúde era obra de misericórdia. As Santas Casas da Misericórdia, espalhadas pelo país desde o século XVI, constituíam a espinha dorsal da assistência. Eram sustentadas por caridade e voluntariado, em parceria com câmaras municipais. Nesse modelo, não havia promessas ilusórias: o atendimento era limitado, mas coerente.
A lógica era clara: quem recebia sabia estar diante de um bem escasso; quem oferecia sabia que dava fruto de sacrifício. Não se esperava assistência ilimitada, mas socorro em necessidade extrema. Havia insuficiências — sobretudo nas áreas rurais —, mas também uma ética de limites que se perderia na modernidade.
República
Com a República de 1910 e, depois, o Estado Novo, o Estado assumiu papel mais ativo: campanhas contra epidemias, expansão hospitalar, políticas de higiene. O sistema, contudo, permaneceu fragmentado. Ainda assim, nasceu uma nova percepção: a saúde já não era apenas dádiva, mas bem que o Estado deveria, em alguma medida, garantir.
A semente do universalismo estava lançada. Quando a Revolução dos Cravos abriu caminho à democracia, a sociedade já esperava mais do que caridade: exigia um dever público.
3. O ato fundador — o SNS e a era da universalidade
A Constituição de 1976 consolidou essa transição ao proclamar a saúde como direito fundamental. Em 1979, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado, assegurando acesso universal, tendencialmente gratuito e organizado pelo Estado.
Esse marco civilizacional aboliu desigualdades históricas: não havia mais portugueses de “primeira” e “segunda” diante da doença. O hospital tornou-se espaço de cidadania; a consulta, gesto de igualdade.
Conquista
Mas toda conquista traz sombra. Ao prometer universalidade e gratuidade, o SNS abriu espaço para uma leitura maximalista: o direito à saúde convertido em direito a tudo. Consultas, exames e terapias passaram a ser exigidos como obrigação absoluta do Estado. A curva de expectativas cresceu mais rápido do que a curva de recursos.
O paradoxo instalou-se: para proteger a universalidade, seria preciso dizer não ao infinito. A Constituição elevou o horizonte, mas não aboliu a escassez. A política, porém, raramente ousou conjugar direito com limite.
4. O crescimento da demanda e a ilusão da abundância
As décadas seguintes trouxeram o paradoxo do sucesso. Ao vencer doenças infecciosas, prolongou-se a vida — e surgiu a era das crônicas: diabetes, câncer, hipertensão, Alzheimer. O envelhecimento populacional aumentou a pressão sobre hospitais, exames e cirurgias.
Ao mesmo tempo, a medicina se sofisticou — e se encareceu. A sociedade de consumo transformou a saúde em mercadoria: consultas e exames foram vistos como produtos de prateleira. Muitos passaram a usar o sistema não por necessidade, mas por desejo.
A política
A política reforçou esse movimento. Governos apresentaram o SNS como joia da coroa, conquista intocável. Falar em limites parecia heresia. O resultado foi o círculo vicioso: quanto mais a política prometia, mais a população exigia; quanto mais a população exigia, mais a política prometia.
O paralelo com Roma é inevitável. Se os imperadores mantinham a plebe com pão e circo, hoje os governos pacificam o eleitorado com saúde e consumo. Mas enquanto o pão era barato e o circo simples, a medicina moderna é cara e sofisticada. O custo da promessa pode arruinar a democracia social.
5. A captura do sistema
Nesse contexto, o SNS tornou-se presa de múltiplas capturas.
Médicos: pelo seu poder técnico e corporativo, muitos atuam no público e no privado. Longas filas no SNS alimentam a procura por consultas particulares com os mesmos profissionais.
Enfermeiros: organizados e mobilizados, conquistaram avanços salariais e de carreira, mas nem sempre aceitaram reformas que aumentariam a produtividade.
Fornecedores: da indústria farmacêutica à tecnologia médica, introduzem produtos caríssimos sem avaliação rigorosa de custo-benefício, sustentados por lobbies invisíveis.
Políticos: usam o SNS como palanque, prometendo hospitais, vagas e aumentos, enquanto as faturas se acumulam.
Usuários: também capturam o sistema. Muitos agendam consultas e exames sem necessidade, confundindo direito com privilégio absoluto.
A soma dessas capturas corrói o edifício que todos dizem defender. Ninguém, isoladamente, destrói o SNS; juntos, porém, todos o drenam.
6. A motivação comum — o interesse imediato
Apesar das diferenças, médicos, enfermeiros, fornecedores, políticos e usuários compartilham um fio comum: o interesse imediato. Cada grupo busca maximizar ganhos no presente, transferindo custos para o futuro.
O médico
O médico protege sua renda; o enfermeiro exige estabilidade; o fornecedor eleva contratos; o político promete o impossível; o usuário pede tudo o que julga ter “pago” em impostos. A lógica é sempre a mesma: “se eu não tirar agora, outro tirará”.
Esse curto-prazismo não é apenas corporativo: é antropológico. É a dificuldade humana em conter desejos, aceitar limites e equilibrar direitos com deveres.
Assim, a saúde converte-se em metáfora da condição contemporânea: queremos viver muito, gastar pouco e exigir sempre. Queremos os benefícios do coletivo sem os encargos do coletivo. É a erosão paciente do pacto civilizacional.
7. Diagnóstico filosófico — o hedonismo social
O problema central da saúde não é contábil: é filosófico. O SNS apenas reflete a doença maior — o hedonismo social.
Depois da Segunda Guerra Mundial, acreditou-se que o Estado poderia oferecer não só segurança, mas felicidade garantida: emprego, educação, saúde e lazer como direitos universais. Enquanto a economia crescia, a promessa parecia possível. Quando a demografia mudou e a produtividade estagnou, a conta chegou.
Vivemos hoje o paradoxo da abundância insatisfeita: nunca tivemos tanta tecnologia, tanta riqueza, tanta longevidade — e nunca estivemos tão insatisfeitos. Quanto mais temos, mais exigimos; quanto mais vivemos, mais tememos perder.
O hedonismo social é a recusa da finitude. Queremos saúde sem doença, juventude sem envelhecimento, dignidade sem esforço. Mas quando a política promete o impossível, destrói o possível.
A filosofia recorda que o limite não é punição, mas condição de sentido. Sem essa pedagogia moral, a saúde se torna altar de expectativas inalcançáveis.
8. O caminho possível — filosofia como medicina da civilização
Se a doença é filosófica, o remédio também deve ser. Precisamos de uma gramática do limite que reconcilie universalidade com responsabilidade, compaixão com prudência, direitos com deveres.
Ensinou
Aristóteles ensinou que a saúde, como virtude, está no equilíbrio. Em termos práticos: priorizar o que salva mais vidas com qualidade, investir em prevenção para reduzir a demanda evitável, remunerar por valor entregue e aplicar comparticipações justas — sempre protegendo os mais vulneráveis.
Relação justa
Martin Buber lembra que a relação justa é encontro, não apropriação. Na saúde, significa ver o paciente, o profissional e o gestor como parceiros, não adversários. Hegel ensina que o progresso não é soma de vontades, mas reconciliação no espírito objetivo. E a Cabala fala do Tikun Olam, a correção do mundo, que transforma o desejo de receber apenas para si em capacidade de doar.
O caminho possível é recuperar essa sabedoria. Não é menos Estado ou mais Estado: é Estado competente, cidadão consciente e comunidade adulta.
9. Conclusão — o antídoto da filosofia
O que se revela na saúde portuguesa é espelho da humanidade. O vírus da captura também corrói educação, política, economia, tecnologia e meio ambiente. Em todos os campos, repete-se a recusa do limite e a ilusão de que direitos podem existir sem deveres.
Filosofia
Contra isso, só a filosofia pode servir de antídoto. Não a filosofia ornamental, mas a viva: que ensina a pensar antes de agir, a aceitar limites como condição de liberdade, a conjugar responsabilidade com direito. Aristóteles recorda o equilíbrio, Buber o encontro, Hegel a reconciliação, e a tradição do Tikun Olam a correção de nós mesmos.
Sem filosofia, teremos máquinas poderosas e sociedades doentes. Com filosofia, talvez reencontremos não apenas a saúde do corpo, mas a saúde da civilização.
(*) O autor é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores. O Poder acolhe a diversidade de pensamentos e visões do mundo e estimula o contraditório democrático e respeitoso.
