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As aventuras de Cacimba 6 — Cacimba, o advogado da palavra

27/09/2025 -

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Por Zé da Flauta*

Foi em Sertânia, terra onde a Justiça costumava andar de lado, que Cacimba protagonizou um caso que até hoje se conta nas calçadas, como se fosse romance ou milagre. Era um agosto seco, de céu trincado e vento triste, quando chegou à cidade uma notícia que fez o povo parar de jogar dominó na praça: uma mulher chamada Dona Rosalina, rendeira de mão fina e olhar sofrido, ia ser julgada por tentativa de envenenamento.

Diziam que ela havia colocado veneno de rato no café do marido, um vaqueiro conhecido por bater mais do que trabalhar. A polícia prendeu a pobre mulher no mesmo dia, sem ouvir direito, sem apurar nada. O povo ficou dividido: metade achava que ela tinha feito certo; a outra metade achava que tinha feito pouco.

O juiz, homem de fama apressada, já tinha a sentença escrita antes do julgamento. Os jurados, escolhidos a dedo, estavam ali só pra confirmar.

Foi então que, na manhã do julgamento, a porta do fórum rangeu e Cacimba entrou.
Terno emprestado, gravata torta, os dois macaquinhos no ombro, Simão, com cara de livro de Direito, e Sebastião, com um lápis atrás da orelha e um charuto apagado na boca.

— Eu vou ser o defensor da dona Rosalina, disse ele, com a segurança de quem já tinha absolvido um bode em Petrolina.

O juiz coçou o queixo.
— E o senhor tem registro na ordem?
— Tenho palavra. Tenho memória. E tenho fé. Me diga se algum desses é menos importante.

O juiz, curioso, deixou.

Começou o julgamento. O promotor gritou, mostrou frascos, disse que a mulher era perigosa, traidora, pecadora. Mostrou uma carta escrita com letra tremida que dizia:
“Esse homem me mata aos poucos”. E então pediu a condenação máxima, com voz de trovão e dedo em riste.

Cacimba levantou devagar, ajeitou a lapela, cochichou com os macacos e olhou fundo para os olhos do juiz. Depois respirou fundo e começou:
— Meritíssimo, senhores jurados, povo que respira poeira e reza pra chover: hoje a Justiça tem dois caminhos, ou pisa em cima da dor de uma mulher, ou aprende a ouvir o grito que ela não pôde dar.

Andou de um lado pro outro, como quem costura um cordel com os pés.
— Invoco aqui o Artigo 27 da Lei do Sofrimento Silencioso, que diz: “Ninguém deve ser condenado por tentar sobreviver à própria tristeza. ” E trago como precedente o caso de Dona Firmina de Tacaratu, que jogou querosene no colchão do marido alcoólatra, mas foi absolvida porque só riscou o fósforo no pensamento.

O povo murmurou. O juiz franziu a testa. Cacimba seguiu:
— Se envenenar fosse pecado sem redenção, o mundo todo já tava na cadeia! Porque há venenos piores que arsênico: a palavra que fere, o tapa escondido, o silêncio de cada noite.



Ergueu a mão com um gesto de teatro:
— Essa mulher, senhores, não é uma criminosa. É uma sobrevivente. Ela foi condenada à invisibilidade, ao medo, ao vazio de uma casa onde a colher tremia antes da mão. Não é café o que ela queria envenenar, era a rotina que lhe matava gota a gota.

Fez uma pausa. Simão chorava. Sebastião batia palmas com os pés.
— Eu digo mais! Que tipo de Justiça é essa que prende a rendeira e solta o carrasco?
Que tipo de lei é essa que se cala diante do choro de uma mulher e grita quando ela reage?

Apontou pro promotor:
— O senhor trouxe frascos. Eu trago perguntas. O senhor trouxe teorias. Eu trago humanidade. E se for crime defender o direito de respirar, então podem me prender também, porque eu respiro alto!

O silêncio tomou o fórum. O juiz baixou os olhos. Um jurado sussurrou: "Esse homem fala com o fígado do mundo."
O juiz, com os olhos marejados, rasgou a sentença pronta. Os jurados, um a um, votaram pela liberdade. Dona Rosalina chorava sem som.

O povo carregou Cacimba nos braços até a praça. E ali, sob a sombra de um juazeiro antigo, ele tirou o terno, coçou a cabeça e disse:
— Hoje fui advogado. Amanhã, talvez eu vire desembargador das almas.

*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.



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