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Náufragos da Reforma Tributária: trabalhadores por aplicativos, nanoempreendedores e soluções jurídicas - Por Rosa Freitas*

02/10/2025 -

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Dei-me ao trabalho de assistir aos debates sobre o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da existência ou não de vínculo entre trabalhadores por aplicativos e a empresa Uber. O que mais me chamou atenção não foi apenas a retórica das partes — advogada dos trabalhadores, Advogado-Geral da União e advogado da empresa — mas a completa ignorância, por todos eles, da recente solução jurídica que a Reforma Tributária apresentou para o enquadramento desses profissionais de vínculos precários.

Muito versados na poesia de Fernando Pessoa, mas "ignorantes" da legislação que, com todos os seus limites, pretendeu regular a realidade de trabalhadores invisibilizados pelo direito tradicional. O direito, por vezes, é um mari revolto — simultaneamente perigoso e traiçoeiro. Infelizmente, como escreveu Pessoa em sua ode marítima, “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor”. O Cabo Bojador, na costa africana, foi um limite simbólico para os navegadores portugueses, e permanece como metáfora para os desafios que o direito contemporâneo nos impõe. A dedicação diária a um direito rarefeito exige alinhar as velas para aproveitar qualquer vento de mudança.

1. A solução da LC nº 214/2025

No campo simbólico do direito, não nos é permitido conhecimento compartimentado ou sem interconexões. A resposta jurídica dada pela Lei Complementar nº 214/2025 precisa ser posta à mesa de debate. Devemos, ainda, enfrentar uma das pautas centrais da Reforma Tributária do consumo: a pejotização como estratégia de planejamento tributário.

O art. 26 da LC nº 214/2025 inova ao introduzir a figura jurídica do nanoempreendedor, inspirado na física das partículas, para designar profissionais com faturamento anual inferior à metade do permitido ao microempreendedor individual (MEI). Hoje, o limite de receita bruta anual do MEI é de R$ 81.000,00, mas há projetos no Congresso Nacional que propõem sua elevação para R$ 144.000,00, com atualização automática pelo IPCA.

Trecho legal relevante:

Art. 26. Não são contribuintes do IBS e da CBS, ressalvado o disposto no inciso II do § 1º do art. 156-A da Constituição Federal: (...) IV – o nanoempreendedor, assim entendido a pessoa física que tenha auferido receita bruta inferior a 50% do limite estabelecido para adesão ao regime do MEI previsto no § 1º do art. 18-A, observado ainda o disposto nos §§ 4º e 4º-B da referida Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, e que não tenha aderido a esse regime.

§ 10. Para fins de enquadramento como nanoempreendedor, nos termos do inciso IV do caput deste artigo, será considerada como receita bruta da pessoa física prestadora de serviço de transporte privado individual de passageiros ou de entrega de bens intermediado por plataformas digitais 25% (vinte e cinco por cento) do valor bruto mensal recebido.

§ 11. Caberá ao Comitê Gestor do IBS e à Receita Federal do Brasil, no âmbito de suas competências, regulamentar o disposto neste artigo, inclusive quanto à forma de apuração da receita bruta e à fiscalização do cumprimento das condições para a não incidência do imposto.

2. Consequências jurídicas

O que isso quer dizer na prática? Que um motorista cadastrado em um ou mais aplicativos de transporte e com movimentação anual de até R$ 162.000,00 (R$ 3.375,00/mês x 12 meses x 4, considerando o redutor de 25%) poderá ser enquadrado como nanoempreendedor e, portanto, não contribuinte do IBS e da CBS. A regulamentação está prevista no § 11, acima transcrito.

Contudo, há uma tensão entre o reconhecimento de vínculo empregatício e o desejo de parte desses trabalhadores em manter autonomia, especialmente quando veem a atividade como renda complementar ou trabalho temporário. Por outro lado, a falta de proteção social gera sensação de abandono e manifesta injustiça.

3. Como compatibilizar esses dois mundos?

Ainda não sabemos. Com a futura regulamentação de contribuições previdenciárias, é possível que o tempo dedicado à atividade possa ser contabilizado para fins de aposentadoria e acesso à cobertura por incapacidade.

Trata-se de um caminho ainda incerto.

Vivemos os efeitos das inovações tecnológicas na organização da produção e do trabalho. A maior empresa de transporte do mundo não possui carros; a maior rede de hospedagem, nenhum hotel. São faces do capitalismo de plataforma e do que Ladislau Dowbor chama de apropriação da mais-valia social — um sistema que concentra capital sem gerar novos investimentos produtivos e seduz o trabalhador a crer que comanda o leme do próprio destino, quando na verdade apenas segura as velas de um barco de rota invisível.

4. O STF

A discussão atual no STF é paradigmática.

• Na Reclamação (RCL) 64018, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, a Rappi contesta decisão do TRT da 3ª Região (MG) que reconheceu vínculo entre a empresa e um motofretista. O fundamento é a chamada subordinação algorítmica.

• No Recurso Extraordinário (RE) 1446336, relatado pelo ministro Edson Fachin, a Uber questiona decisão do TST que reconheceu o vínculo de emprego com uma motorista. O TST entendeu que a Uber deve ser tratada como empresa de transporte, não como simples plataforma.

Ambos os casos estão sob o Tema 1291 da repercussão geral, e a solução adotada vinculará outras decisões sobre o tema no país.

5. Conclusões

• A LC nº 214/2025 inaugura um novo enquadramento tributário para os trabalhadores por aplicativos, com o reconhecimento jurídico do nanoempreendedor, permitindo não incidência do IBS e da CBS.
• O modelo tradicional de vínculo empregatício está em xeque, diante da ambiguidade entre autonomia real e dependência econômica via plataformas digitais.
• O STF enfrenta um dilema que é tanto jurídico quanto sociológico, e que exige leitura transversal entre direito do trabalho, direito tributário e organização econômica.
• A pejotização deve ser enfrentada não apenas como sonegação ou elisão, mas como sintoma de um sistema produtivo que desresponsabiliza quem mais lucra.
• Cabe aos intérpretes do direito incorporar a legislação tributária recente ao debate judicial sobre o trabalho digital, para que a omissão técnica não perpetue injustiças sociais.


Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 dez. 2006.

BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 18 de setembro de 2025. Dispõe sobre o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 19 set. 2025.

DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

PESSOA, Fernando. Mensagem. Lisboa: Ática, 1934.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Recurso Extraordinário (RE) 1446336. Relator: Edson Fachin. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 2 out. 2025.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Reclamação (RCL) 64018. Relator: Alexandre de Moraes. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 2 out. 2025.


*Rosa Freitas é Doutora em Direito, advogada, sertaneja, poetisa e autora de artigos e livros jurídicos, dentre eles "A reforma tributária e seus impactos nos Municípios", "Gestão Municipal de Residuos Sólidos" e "A reforma tributária e suas implicações nas compras governamentais e serviços públicos", Editora Igeduc.


NR - Os artigos assinados refletem a opinião dos seus autores.

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