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O sofisma do comunismo hegeliano: quando a contradição é vendida como profundidade   Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

02/10/2025 -

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“O sofista não destrói a verdade: apenas a cobre com palavras bonitas.”
 
 
1. Preâmbulo: O espetáculo da contradição
 
A motivação deste ensaio não nasceu no silêncio dos livros, mas da perplexidade diante de um discurso público recente. Numa entrevista amplamente divulgada, um intelectual de renome, cercado pela aura de pensador subversivo, apresentou-se sem pudor como um “comunista hegeliano”.
 
 
Um disparate
 
A frase soou-me de imediato como um disparate, mas não desses que se ri e esquece; desses que exigem resposta. Pois quando o absurdo se proclama em alto e bom som e encontra plateias dispostas a aplaudi-lo, o silêncio deixa de ser prudência e torna-se cumplicidade. Não se trata de responder a uma pessoa, mas a um sintoma: o triunfo da contradição travestida de filosofia, tão presente no pensamento de esquerda.
 
Comunismo hegeliano
 
A expressão “comunismo hegeliano” é uma dessas fórmulas que se sustentam apenas na aparência. É vazia em essência, mas sonora em superfície. Sobrevive do paradoxo, não da coerência. E, justamente por isso, encontra ressonância em tempos em que a contradição é apresentada como virtude e a obscuridade como sinal de profundidade.
 
Indignação filosófica
 
Foi dessa indignação filosófica — e não de qualquer disputa pessoal — que nasceu a necessidade deste libelo. Pois se a filosofia ainda tem alguma dignidade, ela não pode se calar diante da deturpação. A palavra filosófica não é ornamento nem espetáculo; é instrumento da verdade.
 
Neste tribunal da razão, convoco o “comunismo hegeliano” ao banco dos réus. Não para ridicularizá-lo de modo leviano, mas para expor, com provas e testemunhas, a incoerência de sua pretensão. Não se trata de uma polêmica circunstancial, mas de uma defesa atemporal da lógica contra o sofisma, da filosofia contra o charlatanismo, da verdade contra a farsa.
 
2. O edifício hegeliano: a marcha do Espírito
 
Hegel representa o ápice de  tradição que acreditava ser possível organizar o pensamento em sistema, conferir à filosofia a dignidade de uma ciência e à História a inteligibilidade de uma narrativa racional. Para ele, a realidade é a expressão da Ideia, que se desenvolve dialeticamente. O mundo não é caos, mas desdobramento lógico do Espírito.
 
Dialética hegeliana 

A dialética hegeliana é o motor desse processo: toda forma contém sua negação, que a põe em movimento até ser superada em síntese. A História, nesse quadro, não é aleatória, mas caminho necessário rumo à realização da liberdade. O ápice desse processo não está na dissolução do Estado, mas em sua exaltação: o Estado é, para Hegel, a encarnação da Razão na História, a forma em que a liberdade se torna objetiva.
 
 
Idealista absoluto
 
Aqui está o núcleo: Hegel é idealista absoluto. Para ele, o fundamento do real é espiritual, não material. Sua filosofia é teleológica, visa ao sentido, não ao acaso. Sua visão é hierárquica, ordenada, reconciliadora. Nada poderia estar mais distante da proposta revolucionária que, décadas depois, se apresentaria como comunismo.
 
3. A inversão marxista: o materialismo histórico
 
É de Hegel que Marx recebe a herança formal: a dialética. Mas para fazer dela um instrumento revolucionário, Marx precisava inverter o sistema. O que em Hegel era Espírito, em Marx torna-se matéria. A Ideia, que em Hegel governa a História, em Marx torna-se reflexo da infraestrutura econômica.
 
 
Frase célebre
 
A frase célebre — “coloquei Hegel de cabeça para baixo” — traduz essa operação: não é a consciência que determina o ser social, mas o ser social que determina a consciência. Não é o Espírito que se desenvolve na História, mas a luta de classes. Não é o Estado que encarna a Razão, mas o Estado que perpetua a dominação.
 
Marx
 
Marx não é herdeiro de Hegel, mas seu parricida. Ele conserva a dialética como método, mas a submete ao materialismo. Ao fazê-lo, rompe com o núcleo da filosofia hegeliana. O comunismo, para Marx, não é realização da liberdade racional, mas abolição da própria ordem.
 
Portanto, é impossível - filosoficamente impossível - falar em “comunismo hegeliano”. Essa expressão trai tanto Hegel quanto Marx: o primeiro porque se opõe à dissolução revolucionária, o segundo porque só pôde nascer ao negar o idealismo hegeliano.
 
4. O sofisma da fusão impossível
 
O que é, então, um “comunista hegeliano”? Um híbrido disforme, que só sobrevive como retórica. Não é síntese, mas contradição insolúvel.
 
Para Hegel, o Estado é o ápice; para o comunismo, o Estado é o inimigo.
 
Para Hegel, a liberdade é a realização da razão; para o comunismo, é a supressão da ordem.
 
Para Hegel, a realidade se explica pela Ideia; para o comunismo, pela matéria.
 
Chamar alguém de “comunista hegeliano” é como dizer que a água é seca ou que o fogo é frio. É transformar a negação em identidade. É, enfim, trair o princípio elementar da não contradição.
 
O sofista, porém, prospera justamente aí: onde a lógica exige coerência, ele propõe paradoxo. Onde a filosofia pede clareza, ele oferece obscuridade. Onde a verdade exige rigor, ele promete espetáculo.
 
5. A sedução do paradoxo
 
Mas por que tais fórmulas encontram eco? Porque o espírito contemporâneo, cansado da verdade, prefere o jogo da contradição. O paradoxo fascina, pois oferece ao leitor a ilusão de profundidade: “se não entendo, deve ser genial”.
 
 
Discurso
 
Assim, discursos que misturam Hegel e comunismo ganham respeitabilidade, não porque tenham consistência, mas porque aparentam complexidade. O truque é simples: tome dois conceitos opostos, una-os num mesmo rótulo e apresente-o como descoberta revolucionária. O público, sedento de novidades, aplaudirá.
 
Essa é a lógica do sofisma moderno: confundir obscuridade com profundidade, contradição com dialética, espetáculo com filosofia. É a vitória da retórica sobre a verdade.
 
6. A seriedade contra o charlatanismo
 
A filosofia, desde Sócrates, exige clareza. Não basta acumular citações nem misturar conceitos. É preciso sustentar premissas, enfrentar contradições e conduzir o raciocínio até sua conclusão. Onde há incoerência, não há filosofia; há apenas jogo retórico.
 
Por isso, a ideia de um “comunismo hegeliano” não é apenas risível: é perniciosa. Ao trair Hegel e deturpar Marx, ela engana o leitor, faz da filosofia um circo e do pensamento uma performance. Representa não apenas um erro conceitual, mas um sintoma da degradação intelectual de nosso tempo.
 
7. Epílogo: A máscara do sofista
 
Vivemos dias em que a palavra perdeu seu peso e a contradição virou método. O sofista contemporâneo já não precisa convencer: basta confundir. Ele não busca a verdade, mas o aplauso. Não edifica, mas encena.
 
A filosofia, porém, não pode se contentar com isso. Seu dever é maior: desfazer ilusões, desmontar sofismas, restaurar a clareza. É preciso lembrar que não há síntese entre Hegel e comunismo, assim como não há conciliação entre espírito e matéria quando se pretende reduzir um ao outro.
 
 
 “Comunismo hegeliano”
 
O “comunismo hegeliano” é apenas a caricatura de uma filosofia que esqueceu a verdade. É a máscara do sofista moderno, que ri da lógica enquanto encanta plateias. Mas, como ensinava Sócrates, a máscara cai quando confrontada com a razão.
 
E nesse instante, vemos o que sempre esteve oculto: não profundidade, mas vazio. Não sabedoria, mas charlatanice.
 
*Jorge Pinho é advogado, ex-PGE do Amazonas e pensador.
 
NR - Os textos assinados refletem a opinião dos seus autores. O Poder acolhe e estimula o livre e democrático confronto elevado de ideias.

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