
Tréplica ao pensador Jorge Pinho - A caricatura e o Espelho, por Natanael Sarmento*
03/10/2025 -
O advogado Jorge Henrique F. Pinho replicou minhas críticas ao seu artigo “A Europa perdida de si mesma”. Considerou-as “caricaturais” e “sombrias”, sem luzes para iluminar o debate de ideias: “antiga estratégia de atacar pessoas e não argumentos”, conclui. Autonomeado advogado das tradições da civilização ocidental europeia, sente-se ofendido. E declara-se fortalecido com as nossas críticas assim como Montaigne que ensinava “quando me atacam, não me destroem; apenas me revelam”.
Montaigne fora disso
Montaigne em defesa de civilização eurocêntrica atenta contra a lógica. É tão estapafúrdio quanto o desfile de patriotas brasileiros com bandeira dos EUA no dia 7 de Setembro da Independência do Brasil. Montaigne - século XVI - no ensaio sobre “Canibais” criticava o etnocentrismo europeu e a ideia de superioridade moral da civilização ocidental. Refutava o centrismo cultural Europeu como espelho de costumes. Foi precursor da alteridade, do relativismo cultural criticado pelo advogado como uma gazua que abre as portas da decadência da cultura superior europeia.
Contrariamente
No seu espelho o advogado Pinho vê a fé religiosa originária de Israel, as bases legais do direito romano e a filosofia legadas pelos gregos os pilares da cultura Europeia que devem ser preservadas e universalizadas.
Qual Espelho?
O espelho como metáfora possibilita muitas leituras. Desde reflexo da realidade à sua inversão, câmera escura, magia de imagens, ouvido da Rainha má da Branca de Neve, Espelho de Alice depois das Maravilhas da Rainha do “corta a cabeça”, mitos dos rituais das civilizações andinas dizimadas pelas espadas dos “conquistadores” europeus, instrumento cabalístico, morte dos Narcisos, dentre outras.
Canibais são os outros
Montaigne espelhou-se nos canibais e criticou a "barbárie" da civilização europeia. Maravilhou-se com a cultura dos “selvagens”, findando com a ironia: “Tudo isso é, em verdade, muito, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças!”.
Os desígnios de Deus
O pensador francês tratou com prudência a questão fé religiosa “que homem pode alcançar o querer do Senhor?” Bastante diferente do Pinho, do século XXI, senhor das “luzes da razão” que defende a “Palavra” de Jerusalém com fervor de cruzado.
A verdade
No artigo “O Advogado do Diabo” defendemos ideias e princípios. Com argumentos antitéticos concluímos que o artigo daquele autor “tem citações que ecoam forte como batidas de bombos, mas sonoridades, igualmente de espaços vazios, ocos por dentro. Não partem da Terra para explicar o Céu. E não conseguem ocultar, apesar da tentativa de elegância nas palavras, a ‘hediondez de um pensamento’ extremado, intolerante, sionista, racista e de ultradireita.”
Carapuça
Calhava desmentir o alegado com argumentos. O autor não o faz. Reafirma na réplica “O Espelho e a Sombra” (O Poder 01/10) a cartilha de pensamentos ultradireitistas, preconceituosos étnicos culturais, eurocêntricos, fornecendo mais elementos de convicção para os traços da nossa “caricatura”.
Suas teses:
1. Pinho admite que a Europa foi colonialista, exploradora e responsável por guerras. Quanta concessão! No frigir dos ovos, diz que isso tudo valeu a pena. A Europa legou aos “povos bárbaros” direitos humanos, a cidadania das leis universalizadas romanas, a lógica, filosofia, a arte e cultura dos gregos e a fé de Jerusalém.
Esqueceu o advogado de questões relevantes – nas anunciadas heranças culturais que não devemos renunciar, segundo diz
Vejamos
a) Atenas é lembrada e não como berço da democracia na antiguidade. Que a civilização helênica como qualquer outra, tem uma base material de produção, porque para “pensar” e estar vivo é preciso os meios de subsistência. Os filósofos helênicos da natureza, socráticos, aristotélicos, platônicos, cínicos, sofistas, dialéticos, epicuristas, outros não comiam o pensamento. Quem produzia o pão e o vinho dos seus banquetes? Como produziam? Escravos e os “bárbaros” escravizados;
b) Roma não universalizou o direito para ser humano e comum a todos. Universalizou como instrumento de consolidação do império, com a força da conquista, a espada dos centuriões. Universalizou a cobrança dos tributos à “glória de César” e boa vida dos patrícios. A plebe romana, explorada, ficava no “pão e circo”.
c) A fé originária de Jerusalém, depois que o cristianismo se tornou oficial dos reinos, foi o principal “aparato ideológico” durante mil anos da servidão humana medieval. Foi o mais eficaz instrumento ideológico das classes exploradoras e das tiranias absolutistas do “reis pelo Direito Divino”, Vontade e Graça de Deus.” Quantas vidas foram ceifadas pelos mercadores da fé em nome da religião, nas cruzadas, nas fogueiras, nas masmorras?
Em resumo
Montaigne não outorgaria procuração para o advogado Pinho representá-lo em juízo ou fora dele.
Jerusalém hoje
O advogado não trata da Jerusalém “fonte da “dignidade da pessoa” da época de Jesus Cristo, o justo que dividia os pães e se acompanhava dos excluídos, perseguidos, pobres, doentes. Do crucificado pelos donos do poder, sob o tacão dos adoradores do “Bezerro de ouro”. Ele advoga a fé de Jerusalém na apologia do Estado de Israel de governança sionista, como se fora procurador do Netanyahu. Contesta como “abuso de linguagem” a nossa crítica ao genocídio em Gaza. E por que não é genocida? Pasmem! Israel com as “armas e tecnologias” que dispõe se fosse genocida já teria exterminado os palestinos há mais tempo. No seu espelho, Israel tenta sobreviver aos ataques do terrorismo do Hamas. Netanyahu não é genocida, não mata civis, deliberadamente.
Bolha
O advogado parece imerso numa bolha de outro mundo. Não vê imagens chocantes e as transmissões diárias dos bombardeios israelenses em hospitais, escolas, moradias, na destruição de Gaza, que causam milhares de mortes de civis, mulheres e crianças. Terrorista é o Hamas que usa a autodefesa contra o Estado e as forças armadas de Israel braço do império Norte Americano que patrocina o genocídio. O terror imperialista em Gaza causa indignação dos povos e governos da comunidade internacional, a exceção daqueles governados pelos neonazistas e fascistas que ameaçam a democracia e paz no planeta.
EUA, Trump e as Guerras
Na defesa do indefensável protagonismo imperialista americano o advogado se supera. Nega o “belicismo imperialista dos EUA”, chama tal crítica de “caricatura”. Parece mais belicista que Trump e assevera: “quando os EUA hesitam, o mundo se torna mais instável [...] a hesitação — e não a firmeza —abriu espaço para o Estado Islâmico, para a Rússia expandir sua influência e para a China consolidar sua ascensão”. Vai além e diz que os acordos obtidos sob Trump mostram que a firmeza pode gerar paz. Só faltou defender o nome do Presidente terrorista americano para o Nobel da paz. Aqui cabe fazer a distinção entre crítica séria e caricatura. Essa afirmativa do advogado não encontra correspondência no mundo sob ameaça da 3ª Guerra Mundial no qual vivemos muito em razão da “pacificação dos canhões” do Trump.
Quem utiliza rótulos?
Das “firmezas geradoras de paz”, quando os EUA não hesitaram, que sabemos. Decidam os caros leitores, por si, o que é fato histórico e o que é rotulação. Sem hesitar, os EUA jogaram bombas nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, no final da 2ª Guerra quando já se falava na rendição dos países do Eixo. Demonstraram força. Na hora da divisão do mundo, do pós-guerra, sentaram à mesa da rapina pós-guerra com mais força. Os EUA consolidam sua supremacia na geopolítica global do pós-guerra como principal economia capitalista e maior potência militar e nessa condição lidera a Otan até hoje. Desde a supremacia amarecina ocorreram mais 40 conflitos armados e guerras nos cinco Continentes. Milhares de pessoas, não apenas militares, mas populações civis morreram nas guerras da Coreia, Vietnam, Iran, Iraque. Que indústria-militar, bancos e corporações americanas alcançam lucros bilionários nas guerras, não tendo, objetivamente, interesse alguma em acordo de paz na Ucrânia e na Palestina, enquanto alimentarem os cofres dos grandes monopólios. A CIA/EUA financiaram Bin Laden e o grupo Al Queada na luta contra os soviéticos no Afeganistão, fornecendo toneladas de armas e munições. Que após a expulsão dos soviéticos o feitiço virou contra o feiticeiro e grupos radicais islâmicos das “guerras santas” mais fortes e equipados, intensificaram os ataques contra o ocidente. Os atentados terroristas do 11 de Setembro são consequências e não causas do crescimento do terrorismo globalmente. Que qualquer pessoa nascida depois de 1945 –da hegemonia bélica americana - terá no ano do seu nascimento guerras ou conflitos armados no mundo.
Modelo
Pinho doura a pílula, mas é esse o modelo de “civilização ocidental” superior que patrocina. Não existem palavras doces para definir concepções ideológicas fascistas travestidas de conservadorismo de suposta defesa “das raízes da árvore da civilização ocidental. Concordamos com o poeta Goethe: “a teoria é cinzenta e verde é árvore frondosa da vida”. A história humana é da luta de classes entre exploradores e explorados, o capitalismo surgido das ruínas do feudalismo não aboliu as formas de exploração, as modificou. Saber distinguir uma teoria científica de uma crendice, espelho de caricatura, fato verdadeiro e Fake News é histórica, não é questão de fé religiosa. Se um simples traço caricatural define melhor porque se comprova na história humana uma fato ou objeto de investigação pode ter mais valor que um Tratado da Torre de Babel do falso caminho para o Céu. Afinal, o dirigível Graff Zeppelin é uma magnífica e gigantesca engenharia, mas sustentado por gases mais leves que o ar podiam cair das alturas com simples faíscas. E sim, criticamos as purezas fundamentalistas da fé, a humanidade se livrou dos Torquemadas, felizmente. De toda forma, não custa o alerta, como dizem os espanhóis, “não crio em bruxas, mas que elas existem, existem!”
*Natanael Sarmento é professor e escritor. Do Diretório Nacional da Unidade Popular Pelo Socialismo - UP.
NR - Os textos assinados refletem a opinião dos seus autores. O Poder estimula e acolhe o livre debate de ideias, respeitoso e democrático.