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É Findi - Com a Boca na Botija - Conto, por AJ Fontes*

04/10/2025 -

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Linhas a menos enfeitam meus olhos, nos dias a mais de minha vida. Uma neblina embaça a mente e me deixa perdido, sem encontrar alinho nas palavras postas em um papel ou tela. No meio da fumaça na cabeça, as casas emparelhadas mostram as mesmas ruas de outras histórias; raios de sóis entram por janelas idênticas e se esgueiram por ladrilhos conhecidos.

Nem mesmo, durante minhas queridas caminhadas, enxergo outros caminhos encharcados de invernos tardios carregados de folhas verdes que bailam ao vento, vindos de agostos, ouvindo o bater das asas das pombas rolas.

Puxa! Poderia aparecer uma pedra no meu caminho capaz de me fazer saltar o coração. Ao invés, meus neurônios ocupados em como faria a limpeza, solicitada pelo celular, de milhares de GB’s para manter recebendo e enviando e-mails e buscar minha atenção em compras e falcatruas financeiras.

Quem sabe esse pedregulho que incomoda o calcanhar me traga alguma coisa além da lama nas calças ao me sentar no chão. O vazio na mente dava tempo de enumerar meus movimentos:

1- encolher as pernas,
2- ajoelhar,
3- olhar onde colocar o pé.

— Foi aí que o brilho de uma gota de água assentado na ponta de uma folha de grama me acertou. Passou por minhas retinas e explodiu na minha cabeça.

Completei o meu e o copo de Serafim com a cerveja geladinha que tomamos na venda de Tião. Era um dos fins de semana em que me isolava no silêncio do sítio.

— A pequena pérola refletia a clareira coroada de florezinhas coloridas. No centro, uma jovem mulher, esguia, branca de faces rosadas, olhos claros, cabelos lisos negros e longos. Ela vestia roupas de outros tempos e sorria. Chamou com as mãos e apontou para o chão, aos seus pés. Virei rápido, mas vi ninguém.

Dei conta do lugar. Havia tijolos de adobe alinhados no meio de um tapete de grama baixinha no chão, mostrando os contornos de uma casa. Ligeiro voltei os olhos para a gota, mas não estava mais lá. Caminhei até o centro, onde ela estaria e para onde apontou. Avistei um quadrado, devia medir cinquenta por cinquenta centímetros, de tijolos limpos, parecia que foram colocados naquele dia. Passei o pé, busquei algum vestígio de que alguém estivesse por ali e não encontrei nada.

Fui para casa sem tirar essa história da cabeça. Consegui ver até os olhos dela. Na gota d’água!


Tomei um gole, mastiguei um naco de carne assada na brasa, ouvindo Seu Tonho de Ritinha, sentado com outros na mesa vizinha.

— Meu primo morou ali. Tonho de Lessa.

Os demais confirmaram com balanços de cabeça.

— Essa casa é muito antiga.

Seu Tonho de Ritinha botou o copo na mesa depois de tomar uma lapada de cachaça.

— No tempo das canas, ficava perdida no canavial. Ouvi de vô João que está em pé desde antes dele nascer.
— O último que viveu lá foi Damião das Cabras.
— Isso mesmo. Ele era conhecido de pai. Morou com Dona Fátima ali por muito tempo, até que da noite para o dia, calados, fizeram as trouxas e foram embora.

Perguntei a razão da carreira.

Serafim acudiu.

— Parece que Dona Fátima andou vendo assombração. Diz que ela via toda noite uma mulher. Toda fininha, branquinha, um rosto bonito. Ficava parada no meio da sala e apontava para o chão.

— Foi essa mulher que vi!

Os outros se entreolharam. Serafim acudiu, novamente.

— O amigo devia estar cansado, aperreado com outras coisas. Você mesmo disse que estava procurando o que escrever.
— Teve gente que, achando que ela mostrava o lugar de uma botija enterrada, foi até a casa, cavou a sala, mas não encontrou nada. Depois que outro chegava lá, o chão estava todo liso e os tijolos no lugar. Depois, outro e mais outro. O chão sempre ficou do jeito que o senhor viu. Um dia a casa caiu e o tempo deu conta de desmanchar tudo. Sobrou o que o senhor viu.

Tião levou mais uma cerveja na mesa. Puxou um tamborete e se sentou. A conversa estava na hora do descanso e ele puxou o recomeço. Tirou o palito do canto da boca.

— Essa casa foi construída por um galego que chegou por aqui fugido da guerra. Quando os portugueses tomaram Pernambuco de volta dos Holandeses. Muitos não queriam atravessar o mar de volta para terra deles. Correram para longe do mar e se entocaram. Foram até mais longe, no sertão, mas alguns ficaram por aqui. Ainda há quem acredita que deixaram muito ouro escondido por aí.

Retornei aos afazeres cotidianos na cidade e a visão se misturou ao trânsito caótico e calorento, às entrevistas com clientes e fornecedores, conversas com amigos nas mesas de bares, perrengues e risos com tios, irmãos e primos, à solidão e busca por textos que não conseguia cravar no papel.

Aquele amigo que não via, fazia tanto tempo, surpreendeu no display do celular. Fala garoto. Eu sabia que um dia você iria aparecer. Meio a risos e lembranças confirmei a presença na festa de trinta anos de Pedro.

Estava eu lá, na casa de praia do melhor amigo desaparecido, conversando com gente também desaparecida de minha tela por tempo demais. Que faz um, onde está o outro, o namoro deu certo ou errado, a formatura, o noivado. Dessa vez eu caso! No meio da risadagem.

Procurando um garçom, mirei um canto do jardim. Não qualquer jardim. Esse tinha florezinhas coloridas delineando um gramado bem aparado e, no centro, uma jovem, esguia, branca de faces rosadas, olhos claros, cabelos negros, lisos e longos. Olhava para mim e sorria.

Esqueci a turma e me encaminhei para o quadrado lajeado.

— Oi. Sou Rita.

Naquele instante percebi o tamanho da parede que construía nos meus dias de solidão voluntária, envolvida por histórias possíveis a serem criadas e escritas. A mente estava clara, brilhante. Os versos explodiam e eu falava eles no meio de perguntas bobas: como é seu nome? Rita; você é parente de Pedro? Sou prima; Eu não te conhecia. Conhecia, sim. Eu era aquela pirralha que você brincava de cavalinho com ela. Meu Deus!

O quadrado se ampliou, nos aproximamos e sentimos os perfumes de todas as flores, os cantos de todos os pássaros. Não havia mais distância entre nós. As histórias brotavam de nossas mentes e estrelas explodiam a cada sinapse. Tudo é possível aqui nesse quadrado. Somos tudo que houve, que há e que haverá.


*AJ Fontes, contista e cronista, engenheiro aposentado, e eterno estudante na arte da escrita, publicou o livro de contos: ‘Mantas e Lençóis’.

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