
É Findi - Adeus! Sementes do Recomeço. - Conto, por Maria Inês Machado*
04/10/2025 -
A casa antiga respirava pela chaminé. A fumaça subia, ecoava nas paredes e se espalhava pelo teto. Não aquecia. O frio grudava no meu corpo e na alma. Eu ajeitava gravetos na lareira com gestos mecânicos. Tossia. O frio não vinha só das paredes úmidas; estava dentro de mim, entranhado feito sombra.
A vizinha bateu à porta. Entrou trazendo o guarda-chuva molhado e a serenidade de quem não se apressa. Olhou ao redor, com um sorriso enigmático.
— Estranho chamar de boa tarde. Esta casa parece mais inverno do que tarde.
Suspirei.
— A fumaça insiste em subir, mas o calor não fica.
Raquel aproximou-se da lareira e passou a mão no ar frio.
— É a vida. Quando a saída entope, a chama se perde no próprio eco.
Desviei os olhos, apertando contra o peito um caderno fechado sobre a mesa.
— Nem tudo se varre com vassoura. Há cinzas que moram dentro.
Ela sorriu.
— Até a cinza guarda memória de fogo. Ou vai deixar o frio mandar em tudo?
As palavras ficaram suspensas no ar. Raquel se retirou devagar. A chuva se fez mais intensa. Talvez respondesse àquele diálogo.
Mais tarde, novos golpes na porta ecoaram pela sala. Fortes, impacientes. Hesitei antes de abrir. Diante de mim, encharcado de chuva, estava Jacson, o amor que partira e deixara marcas.
— Ainda a mesma casa e a mesma fumaça — disse ele, sem pedir licença. — Nada mudou.
— Mudou, sim — respondi, erguendo o olhar firme. — O calor se foi.
Ele avançou alguns passos, encarando-me.
— Ou você o apagou? Sempre teve medo do fogo. Medo de se queimar.
Senti a ferida reabrir.
— Viagens constantes. Ausências! A lareira da alma necessita de combustível.
— Recebo ordens. Imperativos da vida militar.
— A farda é seu escudo.
Jacson se aproximou da lareira apagada e riu, amargo.
— Silêncio? Ou fuga? Você sempre fugiu quando era preciso ficar.
A frase despencou dentro de mim feito pedra.
— Não fale do passado! — gritei, erguendo o caderno e tornando-o escudo. — As cartas ainda estão aqui. Todas.
Nunca enviei.
Ele me olhou com desafio.
— Então queime. Livre-se desse peso. Ou vai continuar fingindo que fumaça é calor?
As palavras continuaram ardendo, mesmo após Jacson ir embora.
Abri o caderno. As cartas tinham cheiro de guardado, letras trêmulas, confissões nunca entregues. Li em voz baixa. Uma lágrima caiu sobre o papel. Com raiva, aproximei a carta da chama. O papel crepitou e se curvou em fogo. A fumaça subiu espessa, sufocante. Tossindo, tentei afastar o ar pesado com as mãos.
— Não aquece... só sufoca! — chorei, apagando o papel no chão.
Minhas mãos tremiam. Meu peito ardia. Abracei o caderno com desespero, sentindo-me engolida pelo próprio vazio.
— Por que não consigo? É da alma o frio... não da lareira...
O vento bateu a janela com força, apagando a vela sobre a mesa. A escuridão tomou a sala, restando apenas a fumaça que parecia um véu. O silêncio, dessa vez, não era ausência: soava como convite.
Senti a presença discreta de alguém à porta, sem dizer nada, apenas testemunha. Sorri pela primeira vez.
— Sentiu? A chama não estava perdida. Só precisava de ar.
— É possível, Jacson?
— Sim! Libertação das cinzas do passado. Recomeçar.
Abri a janela. O vento entrou trazendo o cheiro fresco da chuva. Não lancei o caderno ao fogo. Deixei-o aberto sobre a mesa, à maneira de quem aceita conviver com as marcas.
Adeus! Sementes do recomeço. Florescer.
E, quando a claridade da manhã entrou, dissolvendo o frio da sala, entendi: a força do amor não era incêndio que consome. Era sopro que mantinha viva a chama. Recomeçar.
*Maria Inês Machado é psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Intervenção Psicossocial à família. Possui formação em contação de histórias pela FAFIRE e pelo Espaço Zumbaiar. Gosta de escrever contos que retratam os recortes da vida. Autora do livro infantojuvenil 'A Cidade das Flores'.
