
Ensaio - O espelho e a luz: entre a vaidade e o pensamento
06/10/2025 -
Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
“A caricatura é o espelho dos que temem a luz.”
1. Quando o debate se torna espelho
Há momentos em que o debate filosófico, em vez de buscar a verdade, transforma-se em vitrine do ego. O espelho substitui a razão; a vaidade, a lucidez.
Li com serenidade a tréplica de Natanael Sarmento, intitulada “A Caricatura e o Espelho”. Acolho divergências com respeito, pois, como ensinava Cícero, “nada é mais nobre que o embate das ideias quando nasce do amor à verdade e não do desejo de vencer”.
Uma reação
Mas o texto de Sarmento não é um diálogo: é uma reação. Onde deveriam estar as premissas, há adjetivos; onde caberia raciocínio, há caricaturas. Quando a crítica abandona o campo das ideias e recorre a rótulos — “ultradireita”, “racista”, “sionista”, “reacionário” —, deixa de iluminar e passa a refletir apenas o brilho narcísico de quem a pronuncia.
A filosofia
A filosofia, ao contrário da militância, não grita: convida. Meu propósito, portanto, não é revidar, mas restaurar o método — mostrar como se responde com ideias, não com epítetos. Porque a filosofia é um exercício de lucidez, não de revanche.
E é dessa tensão — entre espelho e luz — que nasce este ensaio.
2. A caricatura e o espelho
A diferença entre crítica filosófica e caricatura ideológica é a diferença entre o espelho e a luz. O espelho reflete; a luz revela. O primeiro depende do olhar; a segunda, da verdade.
O caricaturista filosófico — cada vez mais comum nas redes e nas tribunas — prefere atacar quem fala a compreender o que foi dito. Assim transforma divergência em deformação. É o sofista moderno: seduz pelo tom, mas teme a prova.
Postura não surpreende
No caso de Sarmento, essa postura não surpreende: ele é membro do diretório da Unidade Popular pelo Socialismo - partido de inspiração marxista-leninista, cuja retórica revolucionária vê o dissenso não como interlocução, mas como inimigo a ser silenciado.
Essa origem ideológica explica o tom panfletário de seus posionamentos contra meus textos: mais combativos que reflexivos, mais fiéis à luta de classes do que ao diálogo das ideias.
Contraste essencial
E aqui está o contraste essencial: o filósofo busca compreender o real; o militante, confirmá-lo dentro do seu dogma. Onde o primeiro se arrisca à dúvida, o segundo refugia-se na certeza. O resultado é previsível: a crítica se transforma em catecismo, e o debate, em cruzada.
Refúgio
A caricatura é o refúgio do pensamento inseguro e ressentido, muito proeminente no campo da esquerda. Ela não interroga o argumento, mas a biografia; não debate ideias, mas suspeita intenções. O caricaturista é o censor travestido de pensador: acredita que insultar é refutar e que o volume da voz substitui o peso da razão.
Mas o pensamento verdadeiro não teme o contraste — ele o exige. É no atrito que surge a claridade. O espelho multiplica as sombras; a luz, ainda que doa, as dissipa.
3. Montaigne contra Montaigne
Sarmento tenta usar Montaigne contra mim, como se o autor dos Ensaios fosse um relativista cultural que dissolveu toda hierarquia de valores. Mas Montaigne não é o patrono da indiferença — é o mestre da prudência.
Não celebra o canibalismo
Em Dos Canibais, Montaigne não celebra o canibalismo; denuncia o orgulho europeu. Ele não diz que todos os costumes são igualmente válidos, mas que o europeu deve olhar-se no espelho antes de julgar. O que combate é a arrogância, não a verdade.
Montaigne ensina a dúvida metódica, não o niilismo moral. Ele quer que o homem conheça os limites de seu juízo, não que abandone o juízo por completo. Quando escreve que “cada homem leva em si a forma inteira da condição humana”, ele não destrói o universal: o humaniza.
A leitura de Sarmento confunde humildade com relativismo, e prudência com covardia. O verdadeiro Montaigne não abdica da verdade — apenas a veste de humanidade.
4. O reducionismo marxista e a amputação da razão
A crítica marxista, herdeira direta do materialismo, comete sempre o mesmo pecado: reduz o espírito à economia, a ética à classe e a cultura à produção. É a amputação da razão pela matéria.
Sarmento vê em Atenas, Roma e Jerusalém apenas estruturas de poder. Ignora que nelas floresceu o mais alto espírito de transcendência. A filosofia, o direito e a fé não são epifenômenos econômicos — são expressões do Logos, o verbo que se faz cultura e sentido.
A história
A história não é só o relato dos que comeram, mas dos que pensaram.
As civilizações florescem quando o pão alimenta o corpo e a contemplação alimenta a alma. O marxismo ignora isso — e, ao fazê-lo, empobrece o homem.
O homem que vive apenas da base termina sem cúpula: faminto de luz.
A economia move impérios, mas só a transcendência funda civilizações. A luta de classes explica o conflito, não o sentido. O Ocidente nasceu quando o Logos venceu o instinto — quando o pão dividiu espaço com o verbo.
4.1 — O falso pacifismo e a lógica da força
Há uma diferença entre amar a paz e cultuar a fraqueza. A paz verdadeira não é ausência de conflito, mas presença de ordem. Confundir pacifismo com virtude é erro que já custou à humanidade mais vidas do que todas as batalhas em nome da prudência.
Acusam
Os que acusam o Ocidente de “belicismo” esquecem que as grandes tragédias nasceram da hesitação, não da força. Foi a indecisão diante de Hitler que incendiou o mundo. Foi a timidez ocidental diante do terrorismo que alimentou o caos no Oriente.
Trump — com todos os seus excessos retóricos — compreendeu algo que Tucídides e Cícero sabiam: a dissuasão é a forma mais elevada de prudência.
A firmeza, quando guiada pela razão, é o alicerce da paz.
O que Sarmento chama de belicismo é apenas a consciência de que o mal não se vence com discursos, mas com limites. O bem, quando hesita, prepara o caminho do mal.
4.2. O bem e o mal: entre a hesitação e a coragem
O que Sarmento chama de belicismo é, na verdade, o reconhecimento trágico de que o mal não se vence com intenções, mas com limites.
A história humana mostra que o mal prospera sempre que o bem se envergonha de agir. Quando a justiça se torna tímida, a tirania se torna audaz. Quando o homem bom confunde tolerância com omissão, o mal não se corrige — organiza-se.
O bem não é a ausência de conflito, mas a presença da consciência. Ele não consiste em negar a força, e sim em discipliná-la.
Virtude sem firmeza
A virtude sem firmeza é apenas estética moral; a firmeza sem virtude é brutalidade. Por isso, a verdadeira sabedoria consiste em unir compaixão e coragem — reconhecer que a defesa da vida exige tanto a mansidão do cordeiro quanto a vigilância do sentinela.
O mal, ao contrário, nasce da recusa em reconhecer limites. Ele cresce onde o medo disfarça-se de prudência e o cinismo se faz passar por paz.
Toda resistência
Quem chama toda resistência de “belicismo” já se entregou ao apaziguamento moral — aquele estado em que a covardia é batizada de neutralidade.
O bem, quando hesita, prepara o caminho do mal. E toda civilização que perde a coragem de se defender, perde também o direito de existir.
5. Roma e o direito universal
Sarmento vê Roma como sinônimo de dominação. Mas Roma foi, sobretudo, a civilização que transformou a força em norma e o poder em medida. O jus gentium foi o primeiro código que ultrapassou o sangue e a tribo — uma lei que valia para todos.
A justiça romana, com todos os seus vícios imperiais, criou a ideia de ordem universal. Dela nasceu o conceito de aequitas — a equidade que corrige a desigualdade da vida.
Graças a Roma, o mundo aprendeu a dobrar o joelho do poder diante da justiça.
Negar Roma é cuspir na fonte do Direito moderno — inclusive no direito de discordar.
5.1 — O paradoxo da moral seletiva
A crítica antiocidental é seletiva: julga o Ocidente por seus crimes, e o Oriente por suas intenções. Hiroshima, Vietnã, Iraque — sim, foram tragédias. Mas quem mais as denunciou senão o próprio Ocidente?
A civilização
A civilização que criou bombas foi a mesma que criou Nuremberg, Genebra e a ONU. O Ocidente é o único que faz de seus pecados um exame de consciência.
A moral seletiva dos seus críticos cala diante dos horrores da China, do Irã e do Afeganistão. Chamam Israel de genocida, mas silenciam sobre o genocídio de Darfur. Atacam os Estados Unidos, mas ignoram as prisões russas e os drones iranianos.
A esquerda pós-cristã confunde culpa com virtude e transforma a vergonha em álibi moral. Mas o verdadeiro humanismo não é o que acusa o forte — é o que exige que o fraco seja justo.
6. Jerusalém e a dignidade da pessoa humana
Sarmento acusa-me de confundir fé com poder. .Mas a fé que defendo não é a da espada — é a da consciência. Jerusalém não é dogma político; é símbolo espiritual da dignidade do homem.
Revolução moral
A revolução moral do Ocidente nasce dessa ideia: o ser humano é imagem de Deus.
Essa concepção — ausente nos impérios pagãos — transformou escravos em pessoas e reis em mortais.
Sim, houve Cruzadas, Inquisição, abusos.
Mas foram desvios da fé, não sua essência.
A mesma Igreja que errou foi a que preservou manuscritos, fundou universidades e ergueu catedrais.
Entretanto, a fé judaico-cristã é a única que produz arrependimento — e só há redenção onde há culpa.
6.1 — O colapso do discernimento histórico
A crítica de Sarmento revela um fenômeno típico da modernidade: o colapso do discernimento.
A esquerda ideológica substituiu o juízo pela raiva, a dialética pelo rótulo, o pensamento pela emoção.
O Ocidente é julgado não por seus erros, mas por sua superioridade. Israel é odiado não pelo que faz, mas por existir. O ressentimento tornou-se o novo ópio das massas.
A verdadeira compaixão não escolhe o lado fraco, mas o lado justo. E a dúvida — essa virtude ocidental — é o selo da alma livre.
Só as tiranias têm certeza; só os fanáticos não hesitam.
A esquerda moralista se indigna com a espada, mas se ajoelha diante dos tiranos.
O ódio a Israel e aos EUA é a nova religião dos que perderam a fé na verdade.
7. Israel e Hamas:
a falsa equivalência moral
Há uma diferença ontológica entre Israel e o Hamas: um defende a vida; o outro faz da morte um método.
Israel, mesmo errando, hesita. O Hamas, mesmo acertando militarmente, celebra o horror. A diferença entre erro e maldade está na intenção. O erro se revê; o mal se glorifica.
Se Israel quisesse exterminar Gaza, Gaza já não existiria. Mas o faz o Hamas, ao usar escolas como escudos e crianças como armas. E a Autoridade Palestina, corrupta e impotente, faz vista grossa.
Celebrações de 8 de outubro
As celebrações de 8 de outubro, quando multidões palestinas festejaram o massacre de civis, mostram o colapso moral de uma cultura sequestrada pelo ódio.
O humanismo verdadeiro não é o que justifica o terror em nome da dor — é o que o condena, mesmo quando nasce do oprimido.
A compaixão sem discernimento é covardia.
8. O uso indevido do termo “genocídio”
Poucas palavras foram tão degradadas quanto “genocídio”. Criada para nomear o inominável — a destruição deliberada de um povo —, tornou-se arma retórica nas mãos de militantes. Quando tudo é genocídio, nada o é.
Israel não pratica genocídio; defende-se de um grupo que o proclama abertamente. O Hamas grita “Do rio ao mar, a Palestina será livre” — isto é, livre de judeus. Esse é o verdadeiro programa genocida.
O genocida não hesita; o defensor, sim.
Israel hesita — e é essa hesitação moral que o distingue da barbárie.
Banalizar o termo “genocídio” é trair Lemkin e as vítimas do Holocausto, dos tutsis e dos cambojanos. A linguagem é o templo da moral; quando ela apodrece, o pensamento se torna cúmplice do crime.
9. A vaidade e o pensamento
Chamaram-me vaidoso — e talvez com razão.
Há uma vaidade em todo aquele que escreve: a de acreditar que ainda vale a pena falar.
Mas essa vaidade nasce da esperança, não do orgulho. É a vaidade de quem insiste em colocar a palavra onde reina o ruído. A de quem se expõe, sabendo que será ferido, mas fala mesmo assim.
Os que acusam confundem coragem com vaidade. Mas a luz, por natureza, ofusca os que se habituaram à sombra.
Vaidade mais perigosa
Há, contudo, uma vaidade mais perigosa: a do acusador. Ela não cria — reage. Não pensa — grita. Não busca compreender — busca vencer. O militante precisa do inimigo como Narciso precisava do reflexo.
Toda caricatura nasce dessa fraqueza: o desejo de aparecer com agressividade disfarçada de acidez onde falta coragem de compreender.
10. Epílogo — A luz como dever do pensamento
Não escrevo para vencer, mas para iluminar. A filosofia é farol, não espada. E a claridade é dever, não luxo.
O século XXI não precisa de novos inquisidores morais, mas de guardiões da lucidez.
A luz não pertence a ninguém; é herança comum da razão. E enquanto houver quem a tema, haverá quem a sirva.
A polêmica com Sarmento é, no fundo, um elogio à liberdade — porque só há debate onde há luz.
E é por isso que continuo escrevendo: porque toda época que tenta silenciar a verdade prepara, sem saber, o renascimento dela.
“A caricatura teme a luz.
O filósofo, ao contrário, caminha em direção a ela.”
— Jorge Pinho
A vaidade de pensar e a vaidade de acusar
Chamaram-me vaidoso — e talvez com razão.
Há, de fato, uma vaidade inevitável em todo aquele que se arrisca a pensar. É a vaidade de quem se desnuda diante do julgamento público, acreditando que a palavra ainda é um instrumento de luz num tempo em que o ruído domina. Essa vaidade não é orgulho, mas esperança: esperança de que o diálogo ainda possa curar o espírito fragmentado da nossa era.
Vaidade de acusar
Mas há uma vaidade mais perigosa — a vaidade de acusar. Ela se disfarça de virtude e se alimenta da ira. É a vaidade de quem não cria, mas condena; de quem não argumenta, mas rotula.
É o prazer obscuro de quem se vê como paladino da moral, quando na verdade teme o espelho da própria razão. Sua voz se eleva não pela força da verdade, mas pela necessidade de sobrepor-se ao outro.
Vaidade de pensar
A vaidade de pensar é generosa: oferece-se ao risco do erro para buscar a verdade. Já a vaidade de acusar é estéril: teme o erro e, por isso, jamais aprende. A primeira ilumina, ainda que ofusque; a segunda obscurece, ainda que grite.
Porque toda caricatura nasce da mesma fraqueza: o desejo de brilhar com o reflexo do outro, quando falta luz própria para compreender — e o impulso de humilhar o que é diferente para esconder o medo de pensar.
O caricaturista não busca a verdade: busca aliviar a própria sombra. E é por isso que grita — não para iluminar o mundo, mas para abafar o silêncio em que a consciência o acusa.
*Jorge Pinho é advogado, ex-PGE do Amazonas e pensador.

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