
Quando a régua muda, a verdade desaparece: a fome, o IBGE e a política dos números confortáveis Por Jorge Pinho*
13/10/2025 -
“Quem controla a régua controla a narrativa.”
O IBGE anunciou que o Brasil atingiu o menor índice de insegurança alimentar dos últimos vinte anos. A manchete soa como alívio nacional, mas esconde uma contradição evidente: basta entrar em um supermercado popular ou observar a composição da cesta das famílias para perceber que a qualidade alimentar caiu drasticamente. Há algo estranho quando a estatística sorri, mas o prato do povo permanece vazio de dignidade.
A fome
Nos últimos anos, a fome se tornou uma ferramenta de disputa simbólica. Durante o governo Bolsonaro, institutos e organismos internacionais alertaram para um “retorno massivo da fome”, com manchetes alarmistas. Agora, com a mudança de governo, surge o discurso oposto: “melhora histórica”. A realidade, porém, não oscila com a mesma velocidade das narrativas políticas. Oscilam, sim, os critérios de medição.
Ponto central
E aqui está o ponto central: o IBGE alterou a metodologia da EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar) entre os ciclos de 2021 e 2024. Na PNAD COVID, usada ainda durante o governo Bolsonaro, a escala incluía perguntas sobre preocupação com a falta de alimentos e redução da qualidade alimentar como indicadores relevantes de insegurança.
PNAD Contínua
Já na PNAD Contínua 2024, sob o governo Lula, segundo a própria Nota Técnica do IBGE — Módulo Segurança Alimentar, houve “reagrupamento de categorias e harmonização terminológica para fins de compatibilidade estatística”, com novo corte para definir insegurança moderada e grave. Em linguagem simples: famílias que antes eram classificadas como em insegurança moderada passaram a ser registradas como casos leves ou até como “segurança alimentar”, desde que não tenham interrompido completamente o ato de comer.
Importante destacar: não é que os pesquisadores tenham fraudado números. Mudou-se a régua. E quando a régua muda, o país muda no papel — não necessariamente na mesa.
IBGE
Hoje, o IBGE considera segura uma família que consegue comer todos os dias, mesmo que tenha abandonado carne, leite e alimentos frescos e passado a viver de arroz, macarrão instantâneo e misturas ultraprocessadas. A troca da proteína pelo carboidrato barato não altera a classificação oficial, mas altera profundamente a saúde, a dignidade e a nutrição das famílias. É a fome silenciosa: aquela que não mata de imediato, mas corrói por dentro.
Enquanto os relatórios celebram, a realidade mostra açougues vendendo ossos como produto, supermercados com filas por promoções de pé de galinha e feiras populares onde o tomate é comprado por unidade, não por quilo. Isso é segurança alimentar? Segundo a nova régua, sim. Segundo a vida real, não.
Debate ético
Há, portanto, um debate ético que vai além da técnica estatística. O Estado não pode usar a dor do povo como instrumento de narrativa. Quando, em um governo, a régua é apertada para denunciar a fome — e, no governo seguinte, é suavizada para celebrar sua superação —, o que se manipula não é apenas o número, é a percepção moral da sociedade. E a percepção molda a política pública.
A fome não é apenas ausência de alimento. É a redução compulsória da dignidade alimentar. É ver proteína virar artigo de luxo. É alimentar-se para sobreviver, não para viver.
Metodologias estáveis
Um país sério exige metodologias estáveis, comparáveis e honestas, que resistam à tentação de servir ao marketing. O IBGE, instituição historicamente respeitada, não pode se permitir tornar-se um fabricante de narrativas confortáveis. O povo não pede números bonitos — pede verdade.
Porque toda vez que a régua é trocada, quem perde não é o governo da vez. Quem perde é quem ainda abre a panela e encontra mais estatística do que comida.
(*) O autor é advogado, procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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