Atlas da Violência 2025: A Tragédia Silenciosa do Norte e do Nordeste - Artigo - Emanuel Silva*
30/10/2025 -
O relatório publicado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresenta uma radiografia brutal da criminalidade no país.
Entre 2013 e 2023, o Brasil somou 611.725 homicídios — uma média de 52 mil por ano, ou 168 por dia. Difícil chamar esse cenário de “tempo de paz”. Trata-se de um número que, sozinho, coloca o país entre os mais violentos do planeta, superando os mortos de várias guerras civis contemporâneas.
Mas é no Norte e no Nordeste que o Brasil continua morrendo em silêncio. Nessas regiões, a violência não é manchete — é rotina. Enquanto os noticiários se concentram nas operações policiais do Rio de Janeiro, o cotidiano sangrento das periferias de Salvador, Recife, Fortaleza, Manaus ou Belém permanece fora do radar nacional.
Entre 2013 e 2023, apenas o Nordeste acumulou 251.479 homicídios, o equivalente à população inteira de uma cidade de médio porte. Somente em 2023, foram 19.964 assassinatos, uma média de 55 por dia — um a cada 26 minutos.
No mesmo ano, o Sudeste — região mais populosa e rica do país — registrou 11.291 homicídios, ou 31 por dia, pouco mais da metade do número nordestino.
Trata-se da banalidade do mal transformada em rotina: uma violência sem rosto, sem luto e sem comoção nacional.
O que se repete nas planícies da Bahia, nas periferias de Recife e nas comunidades de Fortaleza é mais do que estatística — é o retrato do abandono.
Onde o Estado se ausenta, o crime ocupa o espaço, a desigualdade se multiplica e a morte se torna parte da paisagem.
Nordeste: Epicentro da Violência Brasileira
A violência, aqui, deixou de ser acidental e passou a ser estrutural — um fenômeno que atravessa governos, fronteiras e discursos. Há mais de uma década, o Nordeste é o epicentro da violência no Brasil, concentrando as maiores taxas de homicídios e os menores índices de desenvolvimento humano.
Os números são inquestionáveis: em 2023, apenas quatro estados nordestinos — Bahia, Pernambuco, Ceará e Maranhão — registraram 18.313 homicídios, contra 11.291 em todo o Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo).
Com menos habitantes, o Nordeste mata 62% mais.
É um contraste que escancara a falência das políticas públicas e da segurança nacional.
A cada duas pessoas assassinadas no Sudeste, três morrem no Nordeste.
O caso da Bahia é o mais emblemático.
O estado lidera o ranking nacional em números absolutos, com 6.616 mortes em 2023, o equivalente a 18 assassinatos por dia — uma média superior à de vários países em guerra.
A Bahia teve mais que o dobro de homicídios de São Paulo (3.043), embora possua menos da metade da população. E, proporcionalmente, apresenta 3,2 vezes mais homicídios por habitante que o Rio de Janeiro.
Enquanto o Sudeste recebe atenção diária da mídia e do poder público, a realidade baiana — e nordestina — é tratada com indiferença e silêncio.
Ainda assim, o tema raramente ocupa as manchetes nacionais, nem desperta a mesma mobilização política ou midiática.
O silêncio da grande imprensa e a seletividade das autoridades de Brasília são, nesse contexto, tão chocantes quanto os próprios números. Aqui, a bala é constante, e a resposta é tardia. Cada corpo tombado é mais uma linha escrita na história da indiferença nacional.
Número de homicídios nos Estados do Nordeste
Estado 2013 2023 Total (2013–2023) Média diária 2023
Bahia 5.694 6.616 69.848 18,1/dia
Pernambuco 3.124 3.697 44.482 10,1/dia
Ceará 4.473 2.992 43.251 8,2/dia
Maranhão 2.163 2.008 23.289 5,5/dia
Alagoas 2.148 1.194 20.144 3,3/dia
Paraíba 1.551 1.079 13.738 2,9/dia
Rio Grande do Norte 1.447 955 16.984 2,6/dia
Piauí 598 725 7.754 2,0/dia
Sergipe 965 698 11.989 1,9/dia
Fonte: Atlas da Violência 2025. Ipea / Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Norte: A Fronteira da Barbárie
O Norte do Brasil tornou-se a nova fronteira da violência, onde o Estado é apenas uma ideia distante e o crime preenche o vazio deixado pelo poder público.
Em 2023, a região registrou 6.020 homicídios — 16 por dia.
No acumulado da década (2013–2023), foram 76.676 mortes, tornando-se a única região do país com aumento de homicídios no período: +4,9%.
Os casos mais alarmantes são os do Amapá e do Amazonas.
O Amapá viu a criminalidade explodir em 129%, e o Amazonas teve um crescimento de 30%, reflexo direto da expansão do tráfico internacional, das milícias armadas e da disputa por rotas ilegais de garimpo e madeira.
Em muitas cidades amazônicas, não há batalhões de polícia, nem juízes, nem peritos.
A justiça é uma promessa ausente e a lei é substituída pela força.
Em boa parte da Amazônia, o Estado não existe de fato — apenas de nome.
O resultado é uma região onde o território é vasto, mas o controle institucional é mínimo; onde a floresta é densa, mas a presença pública é rarefeita.
A ausência de infraestrutura, a pobreza extrema e a conivência política transformaram o Norte em um laboratório de impunidade e barbárie contemporânea.
A Amazônia, que deveria ser símbolo de preservação e soberania nacional, tornou-se zona de conflito armado permanente, com crimes ambientais, execuções sumárias e disputas territoriais que se somam ao cenário da criminalidade comum.
Ali, o sangue derramado não tem manchete — e a barbárie se tornou rotina.
Número de homicídios nos Estados do Norte
Estado 2013 2023 Total (2013–2023) Média diária 2023
Pará 3.405 2.542 39.242 7,0/dia
Amazonas 1.191 1.555 16.572 4,3/dia
Amapá 225 516 4.186 1,4/dia
Roraima 214 219 2.392 0,6/dia
Rondônia 483 552 5.979 1,5/dia
Acre 234 217 3.310 0,6/dia
Tocantins 349 419 4.995 1,1/dia
Fonte: Atlas da Violência 2025. Ipea / Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Sudeste: espelho invertido do Nordeste.
São Paulo, o estado mais populoso do país, reduziu pela metade o número de homicídios em dez anos. Em 2023, registrou 3.043 mortes, o menor número da sua série histórica.
Já o Rio de Janeiro, tantas vezes retratado pela mídia como o símbolo máximo da violência nacional, contabilizou 4.292 homicídios em 2023 — bem menos do que a Bahia, que teve 6.616 mortes no mesmo ano. Ou seja, o estado que domina diariamente o noticiário sobre segurança pública mata menos do que aquele que quase nunca ganha uma manchete.
Mesmo com metade da população, o Nordeste registrou 62% mais assassinatos.
É o contraste mais gritante do Brasil contemporâneo.
Número de homicídios nos Estados do Norte
Estado 2013 2023 Total (2013–2023) Média diária 2023
São Paulo 6.035 3.043 44.938 8,3/dia
Rio de Janeiro 5.111 4.292 52.267 11,8/dia
Minas Gerais 4.717 2.795 41.085 7,6/dia
Espírito Santo 1.622 1.161 13.545 3,2/dia
Fonte: Atlas da Violência 2025. Ipea / Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Sul: um retrato diferente.
Em 2023, os três estados do Sul registraram 4.853 homicídios — uma média de 13 por dia, contra 19.964 no Nordeste e 11.291 no Sudeste.
No acumulado da década (2013–2023), foram 62.762 mortes, número ainda expressivo, mas que segue uma curva de redução contínua.
Com melhores indicadores de renda, educação e estabilidade institucional, a região consolidou as menores taxas de homicídio do país. A diferença regional não é apenas estatística — é estrutural.
A violência existe, mas é mais controlada, previsível e parece ser combatida com políticas permanentes — não com improvisos.
Número de homicídios nos Estados do Norte
Estado 2013 2023 Total (2013–2023) Média diária 2023
Paraná 2.936 2.214 27.912 6,1/dia
Rio Grande do Sul 2.322 1.981 25.861 5,4/dia
Santa Catarina 789 658 8.989 1,8/dia
Fonte: Atlas da Violência 2025. Ipea / Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Da fome à bala
Josué de Castro escreveu que “a fome é obra do homem, não do destino”.
A violência também é.
A Geografia da Fome virou a Geografia dos Homicídios — e o mapa continua vermelho, desigual e esquecido.
Enquanto em Brasília sobram discursos, carros blindados, seguranças oficiais pagos com dinheiro público e gabinete climatizado, no Brasil real o cidadão tem medo de pegar o ônibus, sair de casa cedo e ficar sem o celular e ainda ser vítima. A geografia da fome de Josué de Castro transformou-se, hoje, na geografia da bala.
Em um país que o povo continua a morrer de fome, agora também morre de tiro.
Um país que mata mais do que as guerras
A dimensão da tragédia é ainda mais aterradora quando comparada a conflitos internacionais.
Em dez anos, o Brasil teve mais mortos do que a guerra da Síria (500 mil), a guerra da Ucrânia (420 mil) e a invasão do Iraque (300 mil).
Nenhum desses conflitos produziu tantos civis mortos em tempos de suposta normalidade.
O Brasil mata mais do que qualquer guerra moderna — e o faz sem declarar guerra a ninguém, apenas a si mesmo. Se o número total de mortos fosse distribuído ao longo da década, seriam 168 assassinatos por dia: uma tragédia silenciosa, persistente e desigual.
A diferença é que nas guerras há soldados e trincheiras; aqui, há anônimos, silêncio e esquecimento.
Enquanto os mortos da guerra recebem nome, honras e história, os mortos da paz são enterrados no anonimato — sem justiça, sem luto e sem resposta.
No fim, o Atlas da Violência 2025 não é apenas um relatório: é um espelho de um país em colapso moral, onde o Estado falha, a sociedade se cala e a vida humana perdeu o valor.
Fontes:
• Atlas da Violência 2025. Ipea / Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
• MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM).
• UNODC / ACLED – Global Homicide & Conflict Datasets (2024).
*Emanuel Silva, é Professor e Cronista
NR - Os artigos assinados refletem a opinião dos seus autores.


