A inversão da culpa: grande mídia, narcotráfico e o teatro da virtude, por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
31/10/2025 -
“Quando a compaixão perde o juízo, a injustiça se disfarça de humanidade.”
1. O silêncio que protege o crime
Desde o assassinato de Tim Lopes, o jornalismo brasileiro vive sob o signo do medo — e, muitas vezes, da conveniência.
Poucos jornalistas ainda ousam denunciar o verdadeiro poder que domina os morros: o do tráfico armado, sustentado por uma economia paralela e por uma retórica moral que o absolve.
O mais triste
O mais triste é ver que a mesma imprensa que um dia enfrentou ditaduras agora se curva diante de facções. Teme o revide do fuzil e a vingança brutal dos criminosos — como a que transformou Tim Lopes em uma tocha humana, enfiado em pneus e queimado vivo por ter feito o que todo jornalista deveria fazer: buscar a verdade.
Mas talvez o medo maior hoje não seja o do fogo real, e sim o do fogo simbólico — o cancelamento ideológico. Muitos jornalistas temem mais perder o aplauso das redações militantes do que a própria consciência. Preferem a virtude aparente à verdade incômoda, pois é dela que depende o salário no fim do mês.
Encenação
Assim, o noticiário se converteu em uma encenação de empatia seletiva: os criminosos são tratados como vítimas de uma “estrutura social”, e os policiais, como agressores do povo que juraram proteger. A morte, quando parte do crime, é estatística; quando parte do Estado, é manchete.
Por trás de tudo isso, ressoa Maquiavel — mas de modo perverso. O “Príncipe” moderno é o crime organizado, que aprendeu a ser mais temido pelo mal que pode produzir do que o Estado pela justiça que deveria impor.
As facções aplicam Maquiavel com maestria: são hoje um Estado dentro do Estado, com território, população e leis próprias — leis não escritas, mas cumpridas com sangue.
É nelas, e não nas instituições, que o medo se converteu em poder.
2. A retórica da vitimização
A narrativa dominante — regada pelo discurso que domina as universidades, as redações e as cúpulas políticas — converte o mal em consequência e a responsabilidade em mito burguês.
O criminoso armado é descrito como “produto da exclusão”; o policial, como “agente da opressão”. A guerra travada nas favelas é interpretada como se o Estado fosse o invasor, e não o libertador.
Essa inversão moral é o ápice de uma engenharia ideológica que mascara o caos sob o véu da compaixão.
Sentimentalismo
Confunde-se justiça com sentimentalismo, direitos humanos com impunidade, e crítica social com militância partidária.
No fundo, o que se vê não é defesa da vida — é defesa da narrativa. E a narrativa, uma vez capturada pelo dogma ideológico, torna-se arma política contra quem tenta restabelecer a ordem.
3. O discurso que absolve o mal
Sob o lulismo, essa distorção atingiu o paroxismo. Lula chegou ao cúmulo de afirmar que o traficante é vítima do usuário, como se o mal nascesse no consumo e não no crime que o alimenta. É a inversão moral perfeita: o assassino se torna explorado, e o explorado, responsável pela violência que o destrói.
Trata-se da fórmula final de uma ideologia que dissolve a culpa e absolve o mal por decreto político: ninguém é responsável, todos são vítimas de alguma abstração conveniente.
Escolha ética
O crime deixa de ser escolha ética e passa a ser tratado como consequência social; a miséria, como justificativa para o assassinato; a desigualdade, como indulgência para o terror.
Assim, o Estado abdica da justiça e transforma a desculpa em política pública. É o avesso da civilização: nega a liberdade moral, dissolve o mérito e consagra o vitimismo como religião de Estado.
A empatia sem discernimento converte-se no novo ópio das consciências — e o resultado é previsível: quanto mais se desculpa o mal, mais ele se organiza.
4. O preço da covardia
O Rio de Janeiro não apenas está em guerra — vive uma guerra antiga, prolongada e assimétrica, na qual o crime avança há décadas em armamento, território e poder bélico.
O Estado já não enfrenta delinquentes, mas exércitos paralelos que controlam bairros inteiros, arrecadam tributos informais e impõem leis próprias.
Diante desse quadro, a operação do Governo do Rio não foi um gesto de violência gratuita, mas um freio de arrumação necessário. Sem ela, a escalada criminosa continuaria sem resistência.
Reação
Portanto, o que se viu não foi excesso, mas reação: tardia, imperfeita talvez, mas indiscutivelmente legítima tentativa de um Estado acuado de retomar o que ainda lhe resta de controle sobre seu território.
Enquanto isso, o governo federal, indiferente ao colapso, nega auxílio, minimiza o drama e acusa quem luta de ser o agressor. Lula prefere defender o discurso do vitimismo a enfrentar o tráfico que devora vidas e corrompe gerações.
A promessa presidencial de um Brasil “unido” revela-se falácia — porque não há união possível quando um país é dividido territorialmente entre quem trabalha e quem espalha o terror. Ao negar apoio, o Planalto abandona o Rio e, com ele, a própria ideia de Nação.

Vácuo
Nesse vácuo, o governador Cláudio Castro viu-se forçado a buscar apoio até de Donald Trump, um gesto simbólico que expõe o desamparo: enquanto o presidente flerta com a retórica do perdão ao criminoso narcotraficante e recusa anistia a presos políticos, um Estado da federação pede socorro a um líder estrangeiro.
É, com efeito, o retrato mais nítido da falência da autoridade federal — e da mentira lulista de que o Brasil “voltou a ser respeitado”.
O tráfico
O tráfico, nesse contexto, é o verdadeiro poder soberano sobre vastas áreas do país e mais emblematicamente no Rio de Janeiro, e quem governa a nação hoje não se dispõe a nomear ou sequer a enfrentar inimigo.
Além disso, quando a grande mídia se alia à narrativa do crime e o governo assume a defesa moral dos criminosos, o povo, confuso e acuado, passa a negar a própria necessidade da polícia. Essa negação não nasce de convicção, mas de medo. É o instinto de sobrevivência transformado em discurso.
Em muitos discursos e posturas da população carioca — ecoados por parte da imprensa e por intelectuais que nunca subiram o morro — percebe-se uma rendição travestida de consciência social. A polícia é acusada de ser “violenta”, o Estado é visto como “invasor”, e o criminoso, como “morador da comunidade”. É a linguagem do medo, não da justiça.
O cidadão
O cidadão, diante do opressor armado, age como a vítima que tenta agradar o algoz para não ser punida. Crê, ingenuamente, que a submissão deterá a violência; que se não reagir, o criminoso recuará. Mas o mal nunca recua — apenas se reorganiza. Cada vez que a sociedade abaixa a cabeça, o crime levanta a sua.
Essa inversão psicológica - o medo disfarçado de virtude — é o verdadeiro triunfo das facções. O terror físico deu lugar a um terror moral, em que defender a lei passou a ser motivo de culpa, e exigir segurança, um sinal de insensibilidade. Assim, o povo vai se acostumando à servidão, chamando covardia de empatia e rendição de paz.
A covardia institucional transformou o Brasil em território moralmente neutro — onde o herói é suspeito e o criminoso, compreendido.
O país que idolatra a fragilidade e desconfia da coragem está condenado a ser governado pelos fortes do mal e pelos fracos do bem.
5. Epílogo — A Justiça e o espelho de Genebra
O drama brasileiro é que o crime atua em trincheiras e o Estado, em gabinetes. Enquanto o policial enfrenta fuzis em becos estreitos, magistrados, a quilômetros de distância, discutem “protocolos de moderação” como se estivessem em Genebra. Julgam uma guerra real com os critérios de um país imaginário — como se o Complexo da Penha fosse Zurique.
Essa dissonância entre a toga e o território é o retrato de um Judiciário que perdeu o senso de proporção. Não se trata de justificar abusos, mas de compreender que a lei não existe para proteger o crime, e sim para proteger o inocente do criminoso.
Paralisa
O magistrado que paralisa uma operação legítima em nome de uma “humanidade abstrata” não é guardião da Constituição — é cúmplice do colapso da ordem.
Há, é verdade, juízes que honram a Justiça com coragem e prudência. Mas são exceções que apenas evidenciam o contraste com a maioria. O restante vive enclausurado em uma bolha moral, onde o crime é teoria e a polícia, incômodo. A toga, nesses casos, serve mais para esconder a covardia do que para simbolizar a virtude.
E assim seguimos — como um país em que a Justiça se escandaliza com o disparo contra o criminoso, mas silencia diante do cadáver do policial; que se comove com a retórica do algoz e despreza o sacrifício do guardião.
Um país em que o Governo Federal confunde compaixão com rendição, heroísmo com bandidagem — e que, em nome da civilidade, entrega suas ruas à barbárie sob o manto de um discurso hipócrita e covarde.
6. Pós-escrito — O hábito do mal
O mais assustador não é o avanço das facções, mas a naturalidade com que o país aprendeu a conviver com elas. Quartéis-generais do crime, arsenais de guerra, tribunais improvisados, leis próprias — tudo isso tornou-se parte da paisagem urbana e do tecido moral do Brasil.
As reportagens tratam os chefes do tráfico como personagens de uma crônica inevitável, e a população, exausta, já os cita como se fossem fenômenos da natureza: “sempre existiram”.
Essa normalização do mal é a morte lenta da consciência. Quando a sociedade aceita a barbárie como rotina e o Estado a descreve com burocracia, já não há inocentes — há cúmplices por indiferença.
Indignação
A indignação, que deveria mover o país, deu lugar a uma espécie de resignação covarde, como se o crime fosse uma necessidade social e não uma falência moral.
No meio dessa celeuma, surgem magistrados e juristas apressados em rotular os acontecimentos no Rio de Janeiro como “chacina”, equiparando a ação policial legítima à barbárie criminosa — e tudo isso embalado pelo velho discurso da discriminação racial e pela tese de que a sociedade desigual seria a verdadeira autora do crime. Trata-se da mesma retórica que absolve o assassino e acusa o ambiente, dissolvendo a responsabilidade moral no conforto das abstrações sociológicas.
Alguns chegam ao disparate de afirmar que as drogas vendidas em farmácias seriam mais perigosas do que as substâncias comercializadas nas bocas de fumo — um erro conceitual tão grotesco quanto revelador. Confundir medicamentos prescritos por médicos para o tratamento de doenças com drogas ilícitas destinadas ao prazer químico é cometer um equívoco de categoria digno de nota nas aulas de lógica elementar. É a confusão entre o remédio que cura e o veneno que corrompe.
O mais grave
Mais grave, porém, é que tais absurdos partem da “autoridade” de estudiosos do Direito — justamente daqueles que deveriam zelar pela distinção entre o lícito e o ilícito, entre o que preserva a vida e o que a destrói. Quando o jurista adere à retórica da inversão moral, o Direito deixa de ser instrumento de Justiça para transformar-se em laboratório da demência ideológica, onde o verbo serve para confundir, e não para iluminar.
As manchetes
As manchetes apressam-se em comparar a operação do Rio de Janeiro ao episódio do Carandiru, preparando o terreno simbólico para uma narrativa de condenação. É como se a imprensa, de forma premeditada, pavimentasse o caminho para que o crime organizado — por meio de suas redes de influência e disfarces institucionais — possa requerer, em nome dos “direitos humanos”, a exemplar punição dos policiais que enfrentaram criminosos armados com drones, fuzis e granadas.
O Estado
O que não se pode admitir é que o Estado, em guerra, passe a processar seus próprios defensores. Essa administração de perseguição à autoridade policial precisa cessar em nome da razão, da justiça e da sobrevivência da própria legalidade. Punir quem combate o crime é a forma mais sofisticada de proteger o criminoso — e o primeiro passo para transformar o Estado de Direito em refém da delinquência.
Enquanto isso, Lula faz cara de paisagem, fingindo não ver o que todo brasileiro sente. E Ricardo Lewandowski, escudado na linguagem fria da burocracia, transforma a inércia em virtude institucional. Ambos representam a mesma patologia: a recusa em nomear o mal.
Lampejos de luz
Mas há lampejos de luz onde menos se espera. A jornalista Leda Nagle, em um raro testemunho de sanidade moral, relatou a fala de uma mãe ao ver o filho ser preso:
“Você não é vítima da sociedade. Você é vítima dos seus atos.”
Nessa frase simples, mais verdadeira que todas as cátedras, está o antídoto contra a decadência nacional: a lembrança de que a liberdade só existe quando há responsabilidade, e que o mal, quando aceito, deixa de ser apenas um erro — torna-se cultura.
Epílogo final — O ventre e o cárcere
A moral dominante, que absolve o criminoso em nome da compaixão, é a mesma que aprovaria que essa mãe tivesse abortado o filho quando ele ainda era inocente em seu ventre.
Paradoxo cruel: o sistema que prega empatia pela delinquência não hesita em suprimir a vida antes do primeiro sopro.
Hoje, talvez essa mesma mãe — que teve a coragem de gerar, educar e repreender — fosse condenada por não permanecer ao lado do filho, aprovando sua punição como consequência dos seus atos.
O amor que corrige seria rotulado de “violência simbólica”, e a maternidade, de opressão patriarcal.
Entre o ventre e o cárcere, a moral progressista perdeu o fio da humanidade: protege o assassino adulto e despreza a criança por nascer ainda inocente.
Nessa inversão final, o mal é amparado em nome do bem — e o bem, uma vez deixado sem defesa, é acusado de crueldade.
*Jorge Pinho é advogado, ex-PGE do Amazonas e pensador.
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