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É Findi - Finados: O Fim de Uma Mãe - Crônica, por Romero Falcão*

01/11/2025 -

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Sandália da Morte

Lembro bem, quando criança, havia uma brincadeira com as sandálias havaianas, assim: caso a sandália emborcasse, era preciso reagir na hora, desemborcá-la, botá-la de papo pro ar, ou melhor, de tiras pra cima, para evitar o óbito da mãe. Desse modo, meus olhos sempre vigilantes nas sandálias, tomando conta para que nem por um segundo o solado virasse, levasse mamãe. No meu íntimo aquela sinistra brincadeira soava aviso prévio, uma espécie de sandália da morte que calçaria os pés da matriarca, e não demoraria muito. De alguma forma eu intuía que ela partiria para nunca mais voltar.



Madrasta de Todos

A morte batera pela primeira vez na nossa porta no dia 31 de agosto, década de 70. E viria mais vezes nos visitar. Não sei se nessa fatídica data negligenciei a sentinela na sandália Mas o certo é que a madrasta de todos - a morte - veio, veio determinada, usando o mesmo modus operandi que estava acostumada a fazer com a minha vó, mãe de mãe, e os meus tios maternos: Ela chegava de surpresa, fazia o serviço rápido, não deixava ninguém penando sobre a cama, sentido demoradamente o gostinho do fim. Sempre foi prática e ligeira: um piripaque, um baque, o golpe fatal, pronto, tudo consumado.

A Derradeira Vez

Naquele 31 de agosto, senti na infância da alma, o verdadeiro desgosto do tal mês. A princípio, o dia amanheceu tranquilo. Bem cedo, a dona da casa se arrumou, se pintou para mais um dia de labuta. Tomou café e dirigiu-se à parada de ônibus. Sempre elegante no salto e no corte de uma boa costureira. Meu olhar a acompanhava com atenção, afeto, amor, até ela desaparecer na esquina e acenar o último adeus. Jamais imaginara que seria a derradeira vez que sua mão delicada, sensível, mão de artista, pintora, me saudava na luminosa manhã.

O Primeiro Poema

Na tardinha, já na boca da noite, eu refiz o ritual de sempre: larguei o que estava fazendo, poderia ser a melhor brincadeira, nada me detinha, me segurava quando o relógio do coração badalava a hora da mãe chegar. Então, corri para o ponto de ônibus, os pequenos olhos atentos para dentro dos coletivos da nossa linha -Olinda - Casa Caiada - até que ela apareceu com a bolsa na mão, e minha alegria no sorriso, talvez tenha sido o primeiro poema que escrevi - minha alegria radiante ao vê-la de volta pra casa, cheia de vida, sonhos, beleza. Enquanto fazíamos o caminho na rua enladeirada, eu contava as aventuras do dia, da escola. Meu corpo magro, miúdo, pulava ao seu redor, saltava feliz.

Conversou com Meu Pai

Já em casa, ela passou o olho em tudo, como de costume: as plantas, a arrumação, a pia, pratos, a bagunça dos brinquedos. Conversou com o meu pai, jantou, fez uma horinha na televisão preto e branco, marca "Empare". Em seguida foi ao banheiro tomar banho. Daí esqueceu a toalha, nesse instante, foi a última vez que ouvi sua voz meio rouca: "Merinho, pega a tolha pra mim". Levantei da cadeira, entreguei a toalha pela porta semiaberta.



Tristeza Que Não Passa

Minutos depois, um terrível som apavorou nossos ouvidos, a queda fulminante estirou mamãe no tanque do banheiro, de maneira abrupta, estúpida, do jeito que faz a morte na sua obscura e traiçoeira ação. Ao vê-la sendo carregada, o desespero me tomara. Naquela noite, sentira pela primeira vez a pesada dor que a existência nos reserva, a dor penetrante, invasiva, indescritível, incompreensível que matou o doce e terno menino, quando me disseram: mamãe está morta. Há tristezas que não passam. Ainda que o passo do tempo percorra a longa estrada.




Bastaria o amor de mãe, esta luz imortal, para que o homem se sensibilizasse, se convencesse de que a guerra é a construção mais tenebrosa da história humana.


*Romero Falcão, é um cronista que se arrisca a fazer poema torto, autor do livro: Asas das Horas, com prefácio do Prof. José Nivaldo.
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