Reforma Tributária (45) : mais uma vez, sobre os serviços extrajudiciais (cartórios)
03/11/2025 -
Por Rosa Freitas*
Os cartórios — ou, de forma mais técnica, os serviços extrajudiciais prestados por notários, tabeliães e oficiais de registro — merecem atenção especial dentro da Reforma Tributária do Consumo (Lei Complementar nº 214/2025) e do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que está em fase final de votação no Congresso.
Mas aqui vamos tratar apenas da parte que afeta a tributação sobre o consumo.
Hoje, as serventias extrajudiciais pagam ISS aos Municípios, conforme a Lei Complementar nº 116/2003. Mesmo após várias discussões no Supremo Tribunal Federal (STF), o entendimento é de que a cobrança é constitucional. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que a base de cálculo deve abranger todos os custos dos serviços, não apenas os emolumentos, mas também outras verbas cobradas dos usuários.
A partir daí surgiram muitas dúvidas. Afinal, quem paga esses custos adicionais — o tabelião ou o cidadão que utiliza o serviço? A resposta varia pelo Brasil: em alguns municípios, o valor é repassado ao cliente; em outros, o cartório arca com ele.
Outro ponto importante é que o ISS é um imposto cumulativo, ou seja, não há compensação de valores pagos em etapas anteriores. Isso será um grande desafio na transição para o novo sistema. Hoje, não há mais dúvida: os municípios podem cobrar ISS sobre o preço total do serviço prestado pelos registradores e tabeliães, sem a aplicação do antigo “ISS fixo”. Esse entendimento foi consolidado pelo STJ em 2010 (REsp nº 1.187.464/RS, relatoria do ministro Herman Benjamin).
Mas, com a Reforma Tributária, como ficará a situação dos cartórios?
Atualmente, os delegatários, interinos e interventores são tributados como pessoas físicas — o que significa que pagam Imposto de Renda (IRPF) sobre os rendimentos. Os cartórios, por si só, não são pessoas jurídicas. Além disso, não há cobrança de PIS ou Cofins. No entanto, com a Reforma, a CBS passará a incidir também sobre esses serviços, o que afetará tanto os cartórios quanto os profissionais liberais em geral.
A partir de 2027, quem hoje paga ISS passará a pagar também a CBS. E, de 2029 a 2032, haverá uma fase de transição em que se pagará ISS e IBS simultaneamente. Ou seja, um período de adaptação que promete ser tudo, menos simples.
Diante disso, é natural que a insegurança jurídica cresça — e não sem motivo.
1. O princípio da neutralidade
Um dos pilares da Reforma é o princípio da neutralidade, que prevê que todos os brasileiros pagarão a mesma carga tributária por serviços semelhantes, independentemente do local. Assim, a CBS e o IBS terão alíquotas próximas em todo o país, limitadas por uma taxa padrão.
Mas o que isso significa na prática?
Um exemplo simples: uma colega de Petrolina costuma fazer atos notariais em Juazeiro, cidade vizinha, porque lá os emolumentos são até 75% mais baratos. Essa diferença, que hoje é possível, tende a desaparecer com a Reforma, já que haverá um teto comum para as alíquotas, reduzindo a margem de variação entre municípios e estados.
Atualmente, há locais em que nem existe previsão de cobrança municipal para os serviços de cartório. Com a Reforma, isso muda completamente.
2. O fim das alíquotas municipais e a cobrança automática
Hoje, um serviço só é tributado se existir lei municipal específica prevendo a cobrança. A lista de serviços sujeita ao ISS é o que define isso.
Mas essa lista vai deixar de existir.
Com a Reforma, todos os serviços passarão a recolher IBS e CBS, mesmo que o município não tenha legislação própria. Nesse caso, valerá a alíquota de referência federal, que será definida com base em estudos do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Senado Federal.
Em outras palavras, mesmo os municípios que nunca cobraram tributo dos cartórios passarão a fazê-lo automaticamente.
E, segundo projeções, a soma do IBS e da CBS poderá chegar a 28% ou mais até 2033 — uma diferença brutal em relação ao ISS atual, que tem teto de 5%.
3. Um país desigual com uma alíquota única
Um dos maiores problemas é a imposição de uma alíquota única para todos os tipos de serviço. Isso significa que um registro de nascimento gratuito pagará a mesma taxa de imposto que um registro de imóvel milionário.
As diferenças entre serventias são enormes. Há cartórios em grandes capitais com alta arrecadação e tecnologia de ponta — e há outros em municípios pequenos, que só funcionam graças a fundos públicos como o FERC (Fundo Especial para o Registro Civil), que subsidia os custos das unidades menos rentáveis.
Além disso, há desigualdades gritantes em estrutura, pessoal e conectividade. Há serventias que sequer têm internet estável.
Mas a Reforma parece ignorar esse Brasil real e diverso, substituindo-o por um modelo idealizado que não reflete as dificuldades do cotidiano.
Conclusões
1. Despreparo das serventias
Muitas serventias não estão prontas para a transição, que começa com testes em janeiro de 2026. Falta suporte técnico e clareza sobre como aplicar as novas regras.
2. Risco de paralisação dos serviços essenciais
Com o aumento da carga tributária e da burocracia, há risco real de interrupção temporária de serviços essenciais à cidadania, como registros de nascimento, casamento e óbito.
3. Desigualdade entre regiões e serventias
A Reforma ignora as diferenças entre realidades locais, tratando de forma igual cartórios com estruturas e recursos completamente distintos.
4. Conflito entre simplificação e viabilidade
Embora o novo sistema prometa simplificar a tributação, ele pode gerar mais insegurança e custos administrativos, afastando-se do objetivo de eficiência.
5. Desafio de equilibrar justiça fiscal e continuidade:
O maior desafio será conciliar justiça tributária com a manutenção da viabilidade dos serviços notariais e registrais — pilares da cidadania e da segurança jurídica no Brasil.
A Reforma Tributária, ao aplicar de forma uniforme os princípios da neutralidade, da tributação no destino e da não-cumulatividade, parece ignorar as desigualdades que existem no território brasileiro. O risco é que, ao tentar simplificar o sistema, o país acabe criando um modelo mais caro, mais complexo e potencialmente paralisante para serviços essenciais da vida civil.
*Rosa Freitas é Doutora em Direito e pelo PPGD/UFPE, servidora pública, com 20 anos de experiência nas áreas pública e privada. Pós-graduada em Transição Energética e novos Negócios pela PUC-PR. Autora de livros e artigos jurídicos, dentre eles '"A nova dogmáticada da tributação de serviçosno Brasil" pela Editora Ponto a Ponto.

