O paradoxo da lei em meio ao caos: quando o formalismo desarma o Estado, por Jorge Henrique de Freitas Pinho*
07/11/2025 -
“A lei é filha da ordem, não sua substituta.”
1. O formalismo como refúgio
Há momentos em que o Direito, acuado pelo medo ou instrumentalizado por ideologia, passa a se refugiar no conforto de sua própria liturgia de gabinete.
Quando o caos ameaça as ruas e a autoridade se dissolve em fumaça — como ocorreu nos próprios motivos que ensejaram a Operação Contenção do Rio de Janeiro, em 2025 — muitos juristas erguem o texto legal como se fosse um escudo mágico, esquecendo que o papel, sozinho, não detém balas disparadas em um conflito de guerrilha urbana.
Invoca
É o que sucede quando se invoca o estrito cumprimento do Código de Processo Penal (CPP) em territórios dominados por facções armadas, onde a força policial do Estado não entra sem estar sujeita a ser alvejada.
Essa defesa cega da forma não é sinal de civilização: é sintoma de covardia — e talvez, muitas vezes, de conivência.
Trata-se de uma reação psicológica, quase religiosa, ao colapso da realidade. Como se recitar o código pudesse restaurar o que o medo ou a oportunidade dissolveram.
Invocar o CPP em meio ao fogo cruzado é como citar o Código de Hamurábi a bárbaros armados: o gesto pode até parecer nobre, mas é de todo performático e inútil. O formalismo, nesse caso, não é prudência — é simples e descarada negação do real.
2. A confusão entre o Direito e o papel
O erro é de categoria: confunde-se Direito com legalidade, razão prática com ritualismo normativo.
Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, já advertia que a lei não é um fetiche de palavras, mas a cristalização da razão prudente (phrónesis) voltada ao bem comum.
A razão suprema inscrita
Como lembraria Cícero, a lei é a razão suprema inscrita na natureza; e, para Tomás de Aquino, o Direito só é justo quando ordena o bem comum. Reduzir a lei à sua letra é negar-lhe a própria alma.
A letra da lei sem assentar-se no solo da realidade é cadáver esperando sepultamento; o processo sem a soberania do real é teatro de sombras.
Há quem, em nome da pureza legal, aceite a impureza do mundo — contanto que o protocolo seja seguido. Mas com qual propósito? E a que preço?
Entretanto, o verdadeiro jurista sabe que o Direito não nasce da invocação pura e simples da norma, mas da autoridade legítima da razão que o sustenta.
Obrigado
Quando o Estado é obrigado, por força de decisões judiciais, a abdicar do monopólio da força, a norma não é aplicada — é antes declamada, como um rito fúnebre da justiça.
3. A ordem como pré-condição da norma
O Direito é uma planta frágil: precisa de solo fértil e firme. Sem ordem, ele não floresce — murcha. Falar em devido processo legal e uso comedido da força em territórios sem presença estatal é ignorar o óbvio: a norma só existe onde há poder legítimo para garanti-la.
É, para não dizer disparate, completamente inútil discutir se a polícia cumpriu todos os requisitos do CPP se o Estado sequer controla a rua onde cumpre uma diligência.
Antes de perguntar se o Estado cumpre a lei, é preciso indagar se ele ainda existe naquele território.
Função
A primeira função da justiça, em contextos assim, não é aplicar a letra fria da norma, mas reconquistar o espaço físico e moral onde ela possa valer.
O problema é que muitos dos que deveriam garantir essa reconquista preferem encenar discursos sobre “democracia” e “proporcionalidade” em gabinetes climatizados, enquanto o país sangra nas ruas.
Transformaram a toga e o microfone em instrumentos de autopromoção moral, e confundem prudência com omissão.
São os novos sacerdotes da retórica — políticos travestidos de juristas, que discursam sobre garantias enquanto desarmam a autoridade legítima.
No fundo, representam o mesmo teatro farsesco que sustenta o caos: falam de lei, mas agem como se o Estado fosse apenas um cenário de poder.
Paradoxo moral
É nesse ponto que se revela o paradoxo moral da esquerda revolucionária: seus acólitos defendem o direito de tomar o poder pela força — sob o pretexto de libertação —, mas negam ao legítimo detentor da força o direito de retomá-lo quando o território é ocupado pelo crime.
A lógica é de um cinismo teatral: bradam por “respeito às regras” apenas para obrigar o adversário a seguir.
A cena lembra a velha piada dos Três Patetas: brigavam sem regra alguma, mas, quando alguém ia lhes enfiar um soco, um deles punha óculos no rosto — obrigando o outro, por decência, a parar.
A esquerda
A esquerda, em sua retórica, faz o mesmo: rompe todos os limites da ordem, mas, ao ser confrontada, veste os óculos do “direito humano” para interditar a reação.
São palhaços morais de um teatro hipócrita — onde o caos é virtude e a lei, quando aplicada, é “violência de Estado”.
A guerra
A guerra não começa quando o Estado usa a força; mas se torna inevitável quando representantes do Estado passam a ter medo de usá-la.
4. As regras de guerra e o ridículo da inocência institucional
Seria cômico — se não fosse trágico — imaginar a ONU enviando peritos a cada campo de batalha do mundo para determinar, com régua moral e prancheta processual, quem atirou primeiro e se o tiro pelas costas foi “ético”.
As guerras e os combates possuem seus próprios códigos, tão antigos quanto a humanidade, que excepcionam o uso da força em nome da sobrevivência.
Mesmo a guerra tem leis — mas não as leis da ingenuidade.
Pretender aplicar o Código de Processo Penal a uma operação de retomada territorial, como a Operação Contenção, é uma paródia do Direito: um exercício de histeria burocrática disfarçado de compaixão.
Territórios
Em territórios onde o Estado precisa conquistar cada metro de chão para restabelecer o império da lei, o rigor do processo não pode ser examinado com a régua de um gabinete.
No máximo, a análise deveria se fazer sob a lente das regras de guerra, pois é disso que se trata — de um confronto assimétrico onde o Estado luta, não contra cidadãos, mas contra exércitos ilegais que o desafiam abertamente.
Exigir “proporcionalidade” nesse contexto é como pedir etiqueta no meio de um incêndio: revela não virtude, mas alienação.
5. O falso humanismo do legalismo
Sob o pretexto de proteger direitos, muitos juristas protegem o caos. É o humanismo do conforto: prefere a pureza teórica à responsabilidade concreta.
Defendem garantias processuais como se fossem valores absolutos, ignorando que elas só fazem sentido dentro de um Estado funcional. Fora dele, tornam-se ornamentos da barbárie.
A piedade mal orientada é irmã da covardia.
E o homem público que teme o uso da força legítima abre caminho ao domínio da força criminosa. Não há virtude em exigir formalidade diante da violência que desfigura o próprio sentido de humanidade. Há, sim, ingenuidade — ou provavelmente má-fé. E ambas custam vidas.
Os discursos
Nesse sentido, os discursos e as cenas públicas de políticos e juristas que sobem morros dominados pelo narcotráfico sem escolta policial, para “dialogar” e confraternizar, não revelam necessariamente humanidade nem integridade moral. Revelam, antes, no mínimo, a sedução da vaidade travestida de virtude.
Pretexto
Sob o pretexto de empatia, buscam legitimidade onde deveriam reafirmar autoridade.
E, quando confrontamos essas peregrinações simbólicas com os discursos inflamados em defesa dos criminosos que tombaram em campo de batalha, o verniz moral se dissolve — restando apenas o espetáculo da cumplicidade.
O mais grave, porém, é que essa degradação simbólica já alcançou o topo da República.
Nas conversas públicas entre o ex-ministro da Justiça e um decano do Supremo, o drama nacional foi tratado com o deboche de uma anedota — a célebre “piada do ladrão que cai sobre o galinheiro”.
O gracejo, banal em sua origem, precisou ser distorcido para caber no discurso, convertendo-se em alegoria de cinismo.
Inversão moral
Dino acusou de “inversão moral” quem defende o uso legítimo da força e a autoridade da lei. Mas o verdadeiro paradoxo está em quem pretende punir policiais atacados por criminosos fortemente armados — como se exigir o cumprimento do CPP em meio a uma guerra fosse sinônimo de civilidade.
É o retrato exato do tempo em que vivemos: quando o poder brinca com o sofrimento, e a ironia substitui a prudência.
Quando o riso serve para mascarar a conivência, já não há apenas decadência institucional — há dissolução do espírito público.
6. A verdadeira defesa do Estado de Direito
O verdadeiro defensor do Estado de Direito não é o que cita o código, mas o que assegura o espaço onde ele possa valer.
O primeiro ato jurídico de uma sociedade sitiada é restabelecer sua soberania. Sem segurança, não há liberdade; sem liberdade, o Direito é palavra morta.
O Estado de Direito
Restaurar a autoridade legítima — inclusive pela força — não é violar o Estado de Direito, é defendê-lo. A força que protege a lei não é violência; é justiça em estado de necessidade.
Mas há algo ainda mais grave: o próprio Direito, ao se tornar linguagem da burocracia, passou a ser o dialeto do poder que controla o Estado.
Filtro ideológico
A palavra jurídica — antes ponte entre o ideal e o real — converteu-se em filtro ideológico, manejado por quem tem o privilégio de “dizer o Direito”.
Quando o jurista se transforma em sacerdote da forma e o tribunal em templo da conveniência, a norma deixa de servir à justiça e passa a servir exclusivamente aos caprichos do poder.
Regimes
É como nascem as tiranias de toga: regimes onde a coerência importa menos que a retórica, e o verbo jurídico — em vez de libertar — persegue e aprisiona o justo por ousar pensar diferente, por não se curvar à liturgia do medo, por sustentar que a lei deve servir à verdade — e não ao poder de quem a interpreta.
O verbo
Assim, o verbo que deveria proteger o inocente converte-se em instrumento de intimidação, e o tribunal, em palco de purificação ideológica onde se absolve a conveniência e se condena a consciência.
Direito
De tal sorte que não é mais o Direito que organiza o Estado, mas o Estado que instrumentaliza o Direito para perpetuar a burocracia. O processo vira dogma; o rito, escudo; a hermenêutica, disfarce da vontade.
O Estado, quando age em nome da coletividade, não se impõe pela força porque seja tirano — usa a força porque seu uso é legítimo. E o Estado só é legítimo enquanto tiver coragem de existir.
7. Epílogo — Entre o formalismo e a perseguição
Quando o jurista se apega à forma para fugir do real, deixa de ser guardião da justiça e torna-se seu coveiro.
O formalismo é a elegância dos que já desistiram de vencer — e o discurso legalista, o epitáfio do Direito quando a lei já não tem quem a faça cumprir.
Mas o drama contemporâneo vai além da omissão: chegamos ao ponto em que a forma jurídica é usada como instrumento de perseguição política.
A caçada judicial ao governador Cláudio Castro, conduzida por um sistema eleitoral e judicial que acelera processos conforme o termômetro da popularidade, é o exemplo vivo de um Estado que inverte a hierarquia da legitimidade.
Enquanto a criminalidade desafia o poder público, o formalismo institucional volta-se contra quem ainda ousa exercer autoridade.
A espada
A espada da justiça, que deveria proteger a ordem, é manejada como bisturi de poder.
E o resultado é trágico: os que enfrentam o crime são julgados com rigor teológico; os que o alimentam, com benevolência acadêmica.
A civilização não é feita apenas de palavras, mas do silêncio que elas impõem à barbárie.
E, quando a palavra já não basta, é a coragem que deve falar.
8. Pós-escrito — A atual crise dos três poderes e o risco da tirania institucional
"O Direito foi criado para limitar o poder, jamais para ser invocado por aqueles que o podem dizer como sua própria personificação."
“Onde o poder se torna vaidade, o mundo se quebra — e só a verdadeira justiça, aquela que restaura o equilíbrio rompido entre o poder e o bem, o recompõe.
Pois essa justiça não se confunde com vingança, nem com formalismo.”
— Jorge Pinho
Consequência
O que hoje testemunhamos é a consequência direta dessa deformação estrutural: o Judiciário hipertrofiado, em sua mais alta jurisdição, transformou-se no poder que governa sem voto, legisla sem mandato e censura sem pudor.
Isso ocorre porque ele domina a linguagem da burocracia, a gramática simbólica que define o que é “constitucional”, “democrático” ou “antidemocrático” — disso resulta que, nas mãos erradas, essa dominação torna-se instrumento de controle social.
Vaidade
O Executivo se acovarda, o Legislativo se omite, e o Judiciário — movido talvez por vaidade, ressentimento ou pela sedução do poder sem voto — ocupa o vácuo da autoridade com o verbo autoritário de quem se julga guardião do bem.
E como se sabe, uma vez aberta a caixa de Pandora, não há como recolher facilmente os males libertos. É o vaso quebrado da Cabala: uma metáfora da fragmentação da ordem e da perda da unidade que sustenta o mundo.
Resta, então, o Tikún Olam — o chamado à reparação, não apenas do mundo externo, mas da coerência moral dos que o governam.
A crise entre os três Poderes já não é conjuntural: é civilizacional. O Parlamento, que deveria ser a voz viva da soberania popular, tornou-se coadjuvante de um Estado togado que decide conforme o aplauso das redações e o silêncio cúmplice dos covardes.
Papel
Se o Legislativo não reassumir seu papel de representar o povo e frear a expansão simbólica da toga, o país caminhará — não por golpe, mas por saturação — para uma convulsão social inevitável, onde o caos pedirá ordem e qualquer tirano parecerá solução.
E a história é implacável com as repúblicas que esquecem essa lição: toda vez que o verbo da lei se torna monopólio da toga, o povo, cedo ou tarde, responde com o verbo do levante.
A razão
Oxalá a razão emerja entre os três Poderes da República, antes que o silêncio da prudência se converta no clamor da revolta. Porque ainda há tempo — e esperança — de que a coragem do equilíbrio prevaleça sobre o fanatismo pelo poder.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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