Ensaio polêmico - Entre o espelho e o martelo: resposta filosófica a Natanael Sarmento, por Jorge Pinho*
08/11/2025 -
“A história já experimentou o martelo. É hora de redescobrir o espelho".
Ao ler o mais recente artugo do professor e militante esquerdista Natanael Sarmento
(Ensaio - A visão distorcida da direita sobre a criminalidade), publicado ontem neste O Poder,
senti um misto de alegria e nostalgia.
Alegria porque o debate de ideias ainda respira — e nostalgia porque, há tempos, o pensamento cedeu lugar à gritaria.
Por isso, antes de qualquer crítica, registro minha gratidão ao meu abnegado contendor: poucos hoje ainda se dão ao trabalho de escrever; menos ainda, de pensar.
Ele até que começou educado — e, justiça seja feita, escreveu com elegância e sem tropeçar na gramática, o que já é virtude rara nestes tempos apressados.
Até ali, tudo corria bem, especialmente na parte em que se referia às divergências com nosso amigo comum, o sempre lúcido Zé Nivaldo.
Entretanto, bastou que mencionasse o meu nome para o encanto se quebrar. Nem Jorge Henrique de Freitas Pinho, nem Jorge Pinho, como sou tratado em O Poder: apenas um “Jorge Freitas Pinho” solto, talvez para reduzir o homem à caricatura.
A partir daí, o texto se descompôs: o tom antes cortês transformou-se em uma metralhadora giratória de jargões batidos e slogans cansados, recitados como quem confunde convicção com catequese.
Confesso que ri — ri de verdade.
Lembrei-me de Assis Chateaubriand, também nordestino, que fez fortuna e fama como polemista contumaz — e que, entre chantagens e genialidades, aprendeu, como todos nós, “a dor e a delícia de ser o é”.
Mas não é disso que se trata. Natanael não é um chantagista intelectual; é apenas um reincidente na retórica de trincheira.
Afinal, é bom saber que ainda podemos discordar — e, melhor ainda, fazê-lo com palavras.
Montaigne talvez pudesse dizer, no alto de sua lucidez, que discutir é o modo mais civilizado de lutar. Eu acrescentaria: é também o mais humano — porque só o homem verdadeiramente civilizado sabe lutar sem odiar.
Luto não com o martelo da ideologia, mas com o espelho da dialética — nele, o adversário não é inimigo, mas interlocutor; não é obstáculo, mas oportunidade de pensar melhor.
Por isso, recebo a crítica de Natanael como se recebe um presente: com espírito aberto, bom humor e sincera admiração por quem, mesmo discordando, ainda acredita na força das ideias.
E se ele me vê como representante do “Movimento Sem Coração”, por eu haver invadido o coração de Zé Nivaldo — onde Natanael, com justiça, habita há mais de meio século — aceito o título com humildade e com orgulho. Porque o coração, quando se submete à razão, não esfria: ilumina.
Este texto, portanto, não é uma réplica — é uma reflexão. E que seja, com a bênção de Deus, um diálogo entre possíveis amigos que divergem sobre o mundo, mas ainda se respeitam por buscar a verdade.
Porque a verdadeira coragem intelectual não está em vencer um debate, mas em continuar amando a razão mesmo quando ela nos contraria.
2. O espelho da dialética
Natanael invoca Marx e Engels como quem acende uma lamparina no templo do materialismo histórico. O problema é que esquece que a lâmpada é hegeliana — e que, sem a luz da ideia, o materialismo cega.
O erro da esquerda moderna não está em citar Hegel, mas em esquecê-lo. Marx virou Hegel de cabeça para baixo — e, ao inverter o espírito, pôs a humanidade de joelhos.
A dialética, que em Hegel era o movimento ascensional do espírito em busca da liberdade, tornou-se em Marx uma engrenagem cega de forças econômicas, onde o homem se dissolve na poeira da luta de classes.
O verdadeiro dialético, como lembrava Heráclito, sabe que o conflito é o pai de todas as coisas — mas também o artífice da harmonia.
O que Natanael chama de “antagonismo irreconciliável” é, na verdade, apenas um momento da unidade maior: o choque que purifica, não o que destrói.
Por isso, quando falo em ordem, não falo de submissão, mas de equilíbrio. A ordem não é a morte do movimento — é a forma que o movimento assume quando encontra sentido. Não é o silêncio da obediência, mas a música da harmonia interior.
A verdadeira dialética não é o grito de um lado contra o outro, mas o diálogo da verdade consigo mesma.
3. A falácia da luta de classes eterna
É curioso como alguns intelectuais ainda falam da “luta de classes” como se estivessem em 1917. A história, porém, já lhes deu o veredito: onde a luta de classes venceu, o homem perdeu.
Transformaram a inveja em motor da justiça, e o ressentimento em virtude. Substituíram a ética da responsabilidade pela estética da revolta. O resultado é o mesmo em todos os regimes que se proclamaram “populares”: elites políticas enriquecidas, massas empobrecidas e intelectuais orgânicos que vivem de escrever epitáfios para as revoluções que ajudaram a enterrar.
Não há nada de “materialista” em uma filosofia que ignora o espírito humano. Nem nada de “histórico” em uma doutrina que repete os mesmos slogans há cem anos. A luta de classes é o disfarce moderno da velha tentação de culpar os outros por tudo o que não se é capaz de construir.
O verdadeiro drama do mundo não é o conflito entre ricos e pobres, mas entre livres e servos — entre os que pensam e os que terceirizam a consciência ao partido, ao líder, ou à ideologia.
4. O espelho e a fumaça
Natanael acusa-me de defender “chacinas” — talvez por não distinguir legitimidade de violência. O Estado, quando se defende, não assassina; reafirma sua razão de existir. Um policial que reage ao fogo inimigo não é carrasco: é guardião.
O caos urbano do Rio de Janeiro — que serviu de pano de fundo ao ensaio que tanto o irritou — não é uma metáfora política. É realidade. Lá, o Estado não é mais soberano; é visitante. Discutir o Código de Processo Penal em meio ao tiroteio é como recitar Homero diante de um incêndio.
Não há justiça possível quando o medo ocupa o lugar da lei. O formalismo desarma o Estado e arma o crime. E a retórica que transforma criminosos em vítimas é, na melhor das hipóteses, um equívoco piedoso; na pior, cumplicidade disfarçada de compaixão.
O mais grave é que essa confusão virou virtude. O jurista que exige prudência é acusado de insensível; o que justifica o caos, é exaltado como humanista. Esquecem que a justiça sem ordem é poesia; e a ordem sem justiça, tirania. O que defendo é o ponto de equilíbrio entre ambas — a justiça que nasce da coragem de proteger o inocente, não do medo de ofender o culpado.
5. A moral comunista e a miséria espiritual
Natanael, em rara honestidade, confessa: “A moral que defendo é comunista.” Pois bem — agradeço-lhe por essa confissão, porque ela encerra a raiz de todo o mal moderno.
A moral comunista é o maior paradoxo da história: proclama o amor à humanidade e termina odiando o homem concreto. Em nome da igualdade, destrói a liberdade; em nome da justiça, mata o justo.
O homem que promete o paraíso na Terra invariavelmente fabrica infernos administrados por comissários.
Porque toda moral que nasce da ideologia é, no fundo, uma forma de ressentimento. Ela não busca o bem; busca um culpado.
A verdadeira moral — aquela que nasce da consciência e não do decreto — reconhece a imperfeição humana, mas acredita na possibilidade do arrependimento. A moral comunista, não. Para ela, não há pecado, apenas culpa de classe. O bem e o mal deixam de ser categorias éticas e tornam-se rótulos políticos.
E é assim que o amor à humanidade se converte em licença para humilhar pessoas reais.
6. A justiça e o real
A justiça não é um discurso: é uma prática que exige coragem. O jurista que se refugia no formalismo, diante da desordem, trai sua função civilizatória.
E o político que defende criminosos em nome dos “direitos humanos” trai o próprio humanismo. Não há virtude em exigir pureza legal quando o país sangra. Há hipocrisia.
Natanael afirma que a Operação Contenção resultou na morte de 121 “pessoas”. Sim — eram pessoas, seres humanos. Mas também eram criminosos armados com fuzis, muitos deles com mandados de prisão, que escolheram enfrentar o Estado em uma guerra urbana assimétrica. Os que se renderam, foram presos. Não foi chacina; foi combate.
Chamar de “massacre” uma operação que salva inocentes e desarma o terror é inverter o sentido da moral e zombar do sofrimento das comunidades sitiadas.
Quando é contra a direita, Natanael rotula, julga, denigre e condena sem hesitar; mas, quando se trata de criminosos, prefere o eufemismo compassivo de chamá-los “pessoas”.
Sim, são pessoas — e é justamente por serem pessoas que seus atos têm consequências. A humanidade não absolve o crime: responsabiliza-o.
Por isso, aplicar o Código de Processo Penal ao campo de batalha é uma ingenuidade que beira o ridículo. A guerra tem suas próprias regras, e nelas a legitimidade do uso da força nasce do dever de proteger vidas inocentes.
Quando o Estado combate facções fortemente armadas, não está suprimindo direitos — está restaurando a ordem que torna todos os direitos possíveis.
E é preciso lembrar: se o Rio de Janeiro ainda não foi completamente retomado, não é por excesso de rigor, mas por falta de ação.
A inércia do governo federal, a omissão do Ministério da Justiça e a recusa em empregar os blindados da Marinha e o suporte logístico das Forças Armadas retardaram o que poderia ter sido a libertação plena dos territórios dominados.
A covardia administrativa tem custo humano — e quem o paga é o povo pobre das comunidades, não o colunista progressista de gabinete.
A justiça real não se realiza nos salões do discurso, mas nas ruas onde o medo governa.
Ela não é a pureza que se protege com luvas, mas a coragem que se suja para defender o inocente.
A piedade mal orientada é irmã da covardia, e o Estado que teme usar sua força legítima convida o crime a governar.
Quando digo isso, não falo de violência arbitrária, mas de legitimidade — aquela que nasce da proteção da vida, não da retaliação.
O policial que morre defendendo a sociedade não é vilão: é mártir de uma civilização que ainda não aprendeu a se defender dos seus algozes.
E é curioso que Natanael, que tanto fala em dialética, não perceba o paradoxo que denuncia: exalta o conflito, mas condena a força; glorifica a revolta, mas teme a autoridade; quer o movimento, mas abomina a direção.
A verdadeira dialética, meu caro, não é o caos — é a superação dele. A justiça não floresce na neutralidade dos covardes, mas na coragem dos que entendem que paz não é ausência de guerra: é vitória sobre o medo.
7. A falácia moral e o julgamento seletivo da realidade
O problema da esquerda contemporânea não é apenas o erro teórico — é o divórcio da realidade.
Enquanto seus intelectuais descrevem as operações policiais como “chacinas” ou “massacres de pobres”, o próprio povo das comunidades — aquele que vive a tirania cotidiana do tráfico — apoia majoritariamente a ação do Estado.
Pesquisas recentes, inclusive de institutos identificados com o campo progressista, desmentem o discurso militante: segundo o Datafolha, 57% dos moradores do Rio e da região metropolitana consideraram a Operação Contenção um sucesso (CNN Brasil, 31/10/2025).
E o dado mais revelador vem do AtlasIntel: 87,6% dos moradores de favelas cariocas aprovam a operação (CNN Brasil, 02/11/2025).
Esses números desmontam a narrativa ideológica de que o Estado seria o opressor e o criminoso, a vítima.
Afinal, é justamente o povo pobre — aquele que a esquerda diz defender — quem clama pela presença da polícia e pela restauração da autoridade.
O que a elite acadêmica chama de “violência de Estado”, o povo chama de “fim do medo”.
Eis o paradoxo moral de nosso tempo: quem vive da retórica humanista despreza o sofrimento humano concreto.
Falam em “direitos dos oprimidos”, mas ignoram os oprimidos que pedem socorro.
Defendem “a vida dos pobres”, mas calam quando os pobres são mortos pelos senhores do morro.
Invocam “a paz social”, mas rejeitam o único instrumento legítimo capaz de restabelecê-la — a força justa e proporcional do Estado.
O que se vê no discurso de Natanael, com a devida licença, não é filosofia — é sofística.
Não há ali a busca da verdade, mas o desejo de vencer o adversário com palavras.
Confunde-se reflexão com retórica, dialética com verborragia, compaixão com condescendência.
É a velha arte de transformar o erro em virtude e a distorção em argumento.
Trata-se, na essência, da retórica do ressentimento: aquela que prefere acusar o mundo de injusto a reconhecer os próprios equívocos.
Sob o pretexto de defender os pobres, produz um discurso que perpetua a pobreza — material e moral.
E, enquanto repete jargões de classe, o povo real — aquele que enterra filhos, amigos e vizinhos — clama por ordem, segurança e justiça.
Quando o verbo se torna disfarce da covardia e a compaixão serve de escudo para o medo, o pensamento deixa de servir à razão e passa a servir ao poder.
8. Pós-escrito — Entre o espelho e o martelo
Há quem use o espelho da razão para se conhecer; e há quem use o martelo da ideologia para quebrar o espelho.
Natanael prefere o martelo. Mas ainda há tempo de oferecer-lhe um espelho novo.
“Onde o poder se torna vaidade, o mundo se quebra — e só a verdadeira justiça, aquela que restaura o equilíbrio rompido entre o poder e o bem, o recompõe. Pois essa justiça não se confunde com vingança, nem com formalismo.”
O debate que travamos, caro Natanael, não é entre direita e esquerda, mas entre fé e lucidez; entre dogma e reflexão. E eu prefiro a reflexão — porque ela não precisa de inimigos para existir.
Se o teu ideal, Natanael, é o de uma humanidade nova, que seja então pela via da razão e do respeito, não pela repetição ritual da culpa.
O homem novo que espero não é comunista nem burguês — é aquele que olha para o outro e o reconhece como um espelho, não como uma classe.
A história já experimentou o martelo. É hora de redescobrir o espelho. Porque, no fim, o que separa o pensador do militante é simples: o primeiro busca a verdade; o segundo, apenas confirmação.
E, enquanto houver homens capazes de discordar sem odiar, ainda haverá esperança — e filosofia.
Caso contrário teremos apenas uma militância raivosa e surda.
*Jorge Henrique Freitas Pinho é advogado e livre pensador. Ex-Procurador Geral do Estado do Amazonas.

NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores. O Poder defende o livre debate de ideias e acolhe o contraditório. Pessoas e instituições citadas têm garantido espaço para suas manifestações.

