A Pátria Invisível da Língua, por José Manuel Diogo*
09/11/2025 -
Há vinte anos, a Fliporto inventou o impossível: um festival literário em que o português não é apenas idioma, mas destino. O Recife, esse porto de águas mestiças, fez da literatura uma forma de cidadania. E é por isso que estar na Fliporto é mais do que assistir a um evento — é participar de um gesto político e poético que nos devolve a crença de que as palavras ainda podem mudar o mundo.
A língua portuguesa é um dos maiores territórios partilhados sem fronteiras da Terra. São mais de 260 milhões de falantes espalhados por quatro continentes, ligados por algo mais profundo do que a gramática: a emoção. Falamos uma língua nascida do encontro e sobrevivente de todos os desencontros. Do latim dos soldados, da sabedoria árabe, das vozes bantas, do tupi que ensinou o Brasil a cantar. Uma língua mestiça, viva, contraditória e, justamente por isso, humana.
Camões deu-nos a travessia. Pessoa deu-nos a introspeção. Sophia ensinou-nos a ver o mundo pela transparência das palavras. Mia Couto acrescentou a metamorfose dos sonhos, Pepetela a ironia e o senso de justiça, Ondjaki a ternura como resistência, Conceição Evaristo o corpo e a memória das vozes silenciadas, Guimarães Rosa o sertão como espelho do infinito. Cada um deles ampliou o território da língua, transformando-a num exercício de reparação e futuro.
Hoje, falar português é um ato de resistência. Num mundo dominado por algoritmos e inteligências artificiais que pensam em inglês, francês ou chinês, precisamos afirmar o nosso idioma como código de humanidade. A verdadeira cidadania da língua é estar presente — nos livros, nas redes, nas escolas, nas máquinas. É garantir que a língua portuguesa continue a pensar o mundo à sua maneira, com poesia, emoção e justiça.
A cidadania da língua é, também, um gesto de descolonização. É a Europa olhando o Sul sem nostalgia nem soberba. É reconhecer que as feridas históricas ainda sangram, mas que nelas também pode brotar uma nova ideia de igualdade. A reparação começa na forma como nomeamos o outro — e continua na escuta. Escutar o Brasil profundo, a África pulsante, a Ásia de sotaques suaves. Escutar o que a língua ainda tem para nos ensinar sobre convivência.
A Fliporto chega aos seus vinte anos no momento certo: quando precisamos voltar a acreditar que a palavra é o que nos resta de humano. O festival, que nasceu do sonho de Antônio Campos, é hoje um dos raros lugares onde o diálogo entre gerações e geografias se mantém vivo. Ali, a língua portuguesa é casa, porto e travessia.
Por isso, quem ama a literatura e o futuro deve estar no Recife neste novembro. Porque a Fliporto não é apenas um evento — é um lembrete luminoso de que a língua portuguesa é o nosso mar comum, e que navegar por ela é, ainda, o melhor modo de ser livre.
*José Manuel Diogo é escritor e palestrante.


