Opinião - A retórica do óbvio contra o crime: quando a omissão se apresenta como virtude, por Jorge Pinho*
10/11/2025 -
“A segurança é dever do Estado e direito humano fundamental”, disse o presidente Lula. Acrescentando que “não existe solução mágica para acabar com a criminalidade” e que é preciso “reprimir o crime organizado, estrangular seu financiamento e rastrear o tráfico de armas”. A declaração de Lula é citada hoje, segunda-feira 10/11, em matéria de O Poder.
Parece mas não é
Há discursos que soam corretos e, no entanto, revelam justamente o contrário do que parecem defender. A recente fala do presidente Lula sobre segurança pública é um exemplo clássico de como a retórica pode servir não à verdade, mas ao disfarce do erro. Sob a aparência de moderação e lucidez, esconde-se uma lógica de fuga moral e política, típica de quem prefere discursar sobre o problema a enfrentá-lo.
1. O truísmo como método de governo
Ao dizer que “a segurança é dever do Estado e direito humano fundamental”, Lula enuncia uma obviedade constitucional. O artigo 144 da Carta de 1988 afirma literalmente o mesmo. Mas a força de uma frase não está no que ela repete, e sim no que ela revela — e, nesse caso, o que se revela é a falta de substância.
A tautologia, aqui, cumpre a função de substituir ação por enunciação. O presidente veste a toga do professor de moral, mas sem jamais descer à arena concreta onde o crime domina o território e o medo é lei. Essa é a retórica do poder que se autoabsolve: dizer o que ninguém contesta para parecer sensato diante da própria inércia.
2. A falácia da impossibilidade
Logo depois, Lula adverte: “Não existe solução mágica para acabar com a criminalidade.” De novo, é o óbvio, mas desta vez travestido de sabedoria. Ao negar a “solução mágica”, o presidente insinua que qualquer cobrança prática seria ingênua, deslocando o debate da esfera da ação para a da resignação. É o expediente retórico da impossibilidade preventiva: antes mesmo de tentar, declara-se que nada pode ser feito.
O problema é que ninguém pediu uma solução mágica — o que se exige é uma solução republicana. O tráfico de drogas e de armas são crimes de competência federal, cuja repressão depende da Polícia Federal, do Exército e do controle de fronteiras. Ou seja, são deveres que cabem diretamente ao governo que ele preside. O argumento da impotência é, portanto, uma confissão disfarçada de prudência.
3. A contradição performativa
Em seguida, Lula afirma ser preciso “reprimir o crime organizado, estrangular seu financiamento e rastrear o tráfico de armas”.
Ora, é exatamente o que o governo federal tem se recusado a fazer no Rio de Janeiro, onde as facções transformaram comunidades em zonas de guerra. Enquanto o presidente discursa sobre “cooperação”, os blindados ficam parados, os helicópteros são negados e o Exército permanece à margem, como se a defesa da soberania interna fosse assunto municipal.
A contradição é evidente: diz-se o que se nega na prática. O mesmo governo que proclama a necessidade de reprimir o tráfico é o que impede os meios de fazê-lo.
Aristóteles chamaria isso de contradição performativa: quando o próprio ato de dizer desmente o que é dito. O discurso, então, torna-se autodevorador — uma forma elegante de confessar o próprio fracasso.
4. A cooperação como álibi
O último trecho da fala — “O alcance transnacional do crime coloca à prova nossa capacidade de cooperação” — oferece um fecho típico de quem deseja parecer internacionalista para esconder a omissão doméstica.
Ao invocar a “cooperação”, Lula transfere a responsabilidade para fora das fronteiras, como se o problema fosse da ONU ou da Interpol. É a velha tática de dissolver o dever nacional no vapor das cúpulas multilaterais — talvez para justificar mais viagens internacionais em que se hospedará em hotéis cinco estrelas, gastando o que deveria investir na segurança das ruas brasileiras. Enquanto o crime avança nas comunidades, o presidente acumula milhas e discursos, colecionando declarações diplomáticas enquanto o povo coleciona enterros.
5. O ethos da hesitação moral
O que mais espanta, porém, não é a contradição, mas o tom. Em nenhum momento o presidente nomeia o inimigo. Fala em “crime organizado”, “financiamento”, “cooperação”, mas evita os nomes concretos: facções, cartéis, milícias, fronteiras corrompidas. O vocabulário técnico substitui a coragem moral.
É o ethos da hesitação — o mesmo que domina o Judiciário quando teme aplicar a lei nas favelas por receio de parecer violento. A prudência, quando se torna paralisante, deixa de ser virtude. Como advertia Cícero, “o medo é a mãe da covardia pública”.
6. A inversão civilizacional
A combinação de omissão federal e conivência judicial cria um paradoxo ético: o Estado que deveria proteger os inocentes passou a proteger os criminosos de quem os protege.
Nos morros e comunidades, as famílias vivem sob domínio de facções que impõem seu próprio ordenamento: meninas menores são aliciadas e violentadas pelos traficantes, mães são coagidas a aceitar a gravidez de seus algozes, e pais se veem obrigados a levar os filhos para visitar “chefes” encarcerados como se fossem exemplos.
O comércio local é extorquido, o botijão de gás e o transporte custam mais caro que em qualquer bairro nobre, e quem se recusa a pagar morre sem direito a defesa.
As casas são tomadas por “tribunais” do crime, e a pena de morte — vedada pela Constituição — é aplicada diariamente sob o silêncio do Estado.
Enquanto os bandidos circulam com fuzis, a polícia é constrangida por decisões de gabinete; ao mesmo tempo em que os moradores clamam por socorro, ministros de toga falam em “moderação”. O Direito, descolado da realidade, converte-se em liturgia de impotência — um culto formal que absolve o medo e condena a coragem.
E, diante do desastre crescente, Lula tenta corrigir as próprias falas — aquelas em que se contradisse sobre Gaza, sobre ditaduras, sobre drogas ou sobre segurança. Mas cada “correção” soa como uma volta ao mesmo ponto: a retórica furada. Corrige as palavras, não os atos; muda o tom, mas preserva o erro. Seu governo tornou-se um laboratório de narrativas, onde o verbo substitui a verdade e o enredo se sobrepõe à realidade. Como sempre, Lula não fala para agir, mas para continuar falando.
7. Síntese: um ode à omissão
O discurso de Lula, apresentado como prudente e humano, é na verdade uma narrativa perversa e dissimulada — uma farsa moral que glorifica a omissão sob o manto da moderação.
A retórica do óbvio — o dever do Estado, a ausência de soluções mágicas, a necessidade de cooperação — serve apenas para adornar o vazio.
O presidente parece mais preocupado em não se comprometer do que em resolver. E, ao fazê-lo, transforma a prudência em covardia e a moderação em álibi.
Enquanto o crime avança, o governo filosofa sobre o impossível. E o povo, desarmado, é deixado sozinho na guerra que o Estado finge não ver.
8. Epílogo — O direito humano de morrer com medo
Se a segurança é, como disse Lula, “um direito humano fundamental”, a pergunta que se impõe é: de quem é esse direito?
Porque, quando o presidente recusa o apoio federal ao Rio de Janeiro e o STF insiste em tratar uma zona de guerra como se fosse um delito comum, a segurança que se defende não é a do cidadão honesto, mas a dos criminosos que o escravizam.
O Estado que nega proteção aos que produzem e oram, e concede garantias aos que matam e traficam, não é o guardião do Direito — é seu coveiro.
E quando o medo passa a ter mais direitos que a coragem, é a própria democracia que se ajoelha.
A verdadeira segurança, como lembraria Aristóteles, nasce da justiça; e a justiça, do reconhecimento da ordem natural das coisas.
Negar esse princípio é condenar o país à barbárie travestida de humanidade — o último disfarce da covardia política.
*Jorge Henrique Freitas Pinho é advogado e livre pensador.
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