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Ensaio - O casuística da opinião: quando o julgar cede lugar ao gostar, por Jorge Pinho*

13/11/2025 -

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“Quando a razão se curva à conveniência, o poder perde o direito de julgar.”


I. O direito à autointerpretação

O episódio recente na Segunda Turma do STF, envolvendo Dias Toffoli e André Mendonça, revelou algo mais grave do que um desacordo momentâneo. Durante o julgamento sobre a responsabilidade civil do procurador Bruno Calabrich — matéria já pacificada pelo Tema 940 —, Mendonça citou um voto anterior de Toffoli para demonstrar a coerência constitucional: agentes públicos não respondem pessoalmente por atos praticados no exercício de suas funções.

O gesto era respeitável e técnico. Mas Toffoli interpretou-o como agressão. Irritado, acusou o colega de “deturpar” seu voto e, em tom exaltado, declarou:

“Vossa Excelência interpreta o meu voto, e eu interpreto o seu.”

A frase, apresentada como simetria, escondia o oposto: a recusa em ser interpretado. Nascia ali uma pretensão perigosa — o direito inexistente à autointerpretação, como se o sentido de um ato público pudesse ser monopolizado por quem o proferiu.

Esse “direito” imaginário inverte a República: tudo o que é público deve ser interpretável. O voto, uma vez proferido, deixa de ser do ministro e passa a ser do Direito. Reivindicar o monopólio de sentido é privatizar o que é público e censurar o debate.

Ali, no coração do tribunal que deveria ser a casa da coerência, a razão cedeu lugar ao temperamento.

II. A toga contra o logos — versão revisada

O problema não é jurídico, é ontológico. Quando Dias Toffoli recusou a leitura do próprio voto — afirmando, com irritação visível, que “Vossa Excelência interpreta o meu voto, e eu interpreto o seu” — transformou o julgamento colegiado em monólogo.

Sob a aparência de simetria, a frase produz o contrário: nega ao outro o direito de interpretar aquilo que é público, como se o voto ainda fosse propriedade privada do seu autor. Ao impedir que seu voto seja lido, Toffoli separa a palavra pública da razão pública e dissolve o sentido universal da decisão.

No plano filosófico, isso destrói a intersubjetividade que funda o Direito.
O sentido jurídico é sempre resultado de um diálogo entre consciências — não de uma vontade isolada. A Constituição exige decisões motivadas, não ressentidas; fundamentadas, não humorizadas. Não há espaço, em um tribunal racional, para a ideia de que cada ministro ocupa uma ilha interpretativa particular.

Ao agir assim, Toffoli converteu seu voto — que deveria expressar o logos — em reflexo do humor. A hermenêutica deixou de ser método e tornou-se defesa emocional; o colegiado deixou de ser diálogo e virou disputa de autoralidade.

III. O nascimento do casuísmo

O casuísmo não nasce do erro, mas da conveniência. Toffoli, que antes defendera a responsabilidade primária do Estado, agora abandona sua própria tese sem apresentar uma razão convincente.

A diferença entre o voto antigo e o novo não está nos fatos — mas na conveniência.

A indignação substitui o argumento. O gosto substitui o princípio. A vontade substitui o fundamento.

O casuísta parece coerente até que reencontra o próprio espelho. Então reage com irritação — porque ninguém teme mais a coerência do que quem a violou.

IV. A contradição que degrada

Hegel ensinava que o Espírito avança pela contradição. Mas há contradições que elevam — e contradições que degradam. A dialética é fecunda; a vaidade, estéril.

A contradição de Toffoli não produziu síntese; produziu fuga. Ele não negou o voto anterior para superá-lo, mas para ocultá-lo. Não buscou coerência; buscou proteção emocional.

O tribunal, nesse arranjo, deixa de ser espaço do logos e se converte em uma colcha de monólogos togados.

V. A doença do gosto

O debate jurídico cedeu lugar ao choque de temperamentos. Quando o ministro trata divergência como “ofensa”, abandona a objetividade do Direito e o reduz à esfera do eu.

Esse fenômeno — a doença do gosto — é hoje um dos maiores riscos à integridade institucional. A opinião passa a controlar o princípio, e a estética pessoal substitui a hermenêutica.

Enquanto Mendonça lia trechos do voto anterior com serenidade, Toffoli reagia como quem vê o fantasma da própria coerência. E, para afastá-lo, bastou uma palavra: “é a minha opinião”.

Mas o Direito não se curva ao gosto. Tampouco a toga autoriza o achismo.

VI. A decadência necessária

Nenhuma instituição permanece íntegra quando troca o fundamento pela conveniência. O Supremo vive aquilo que parece ser sua fase de decadência lógica: mantém a liturgia, mas perde o sentido. As togas ainda brilham, mas a palavra se opaca.

Contudo, há uma pedagogia na ruína. Toda decadência, quando vista com lucidez, prepara o terreno da restauração. A História educa mais pela contradição do que pela harmonia.

O STF só reencontrará sua autoridade quando lembrar que prestígio não é poder — é credibilidade racional.

VII. A ironia final

Há uma ironia quase trágica em ver um guardião da Constituição reagir como se estivesse numa altercação de bar. Não é a primeira vez que o ministro adota tom improvisado, inflexões coloquiais e postura destoante da liturgia judicial.

Quando a forma se vulgariza, o conteúdo desce junto.
E o Direito começa a ruir não pelo escândalo — mas pela soma discreta das pequenas incoerências.

O povo percebe quando a Justiça vira questão de gosto.
E, quando isso acontece, o prestígio da Corte se torna apenas verniz.

O julgamento atual dirá ao país se o STF pretende reencontrar sua coluna moral — ou se continuará afundando na triste liquidez da modernidade, que ele próprio ajuda a perpetuar.

VIII. Síntese moral e filosófica

Toda instituição que se afasta da verdade atravessa três fases: arrogância, contradição e purificação. O Supremo já percorreu as duas primeiras.

A arrogância está na recusa de admitir que um voto público pode ser interpretado.
A contradição está no choque entre o voto antigo e o voto novo.

A purificação virá — não necessariamente por virtude, mas por necessidade.
Porque aquilo que é incoerente desmorona sob seu próprio peso.

O restauro começa quando o ministro percebe que um voto não é instrumento de vitória, mas de verdade. Que interpretar não é ato de posse, mas de serviço. E que a hermenêutica não é território privado, mas espaço público da razão.

IX. Epílogo — A ruína antes do restauro

A ruína, embora dolorosa, é pedagógica. Ela revela as rachaduras morais escondidas sob a liturgia e devolve ao tribunal sua imagem verdadeira: razão ou vaidade, princípio ou conveniência.

O STF descerá mais alguns degraus — porque toda casa que esquece suas colunas precisa tocar o fundo antes de reconstruir-se. Mas é da poeira da queda que nasce o restauro.

A Corte voltará a ser espelho do Direito quando recordar que não é o juiz quem interpreta a Constituição — é a Constituição quem subordina o magistrado e lhe impõe a medida do que ele pode e do que ele deve.

X. Pós-escrito — A moral do ocorrido

No fim, o episódio expôs a doença que corrói a instituição: o casuísmo da opinião. Quando um ex-presidente do STF reage como proprietário do próprio voto, a sobriedade nacional inteira entra em risco. Porque a lucidez de um povo declina quando suas instituições declinam primeiro.

A Justiça começa a morrer quando o julgar cede lugar ao gostar. Mas pode renascer no instante em que tiver coragem de se ver no espelho da razão.

O Supremo será digno do nome que carrega quando recordar que a Constituição não é reflexo de suas vaidades, mas a imagem de uma nação que ainda acredita na verdade e na responsabilidade.


Amigo, acordei agora e me veio a ideia de incluir esse final no tópico X:

Há episódios que, mesmo involuntariamente, evocam memórias culturais de outros tempos. Este, em particular, trouxe à mente — como paródia grotesca — aquela canção célebre dos anos da ditadura, O bêbado e o equilibrista.

Não pela poesia da música, mas pelo contraste irônico que ela permite: de um lado, o equilibrista da razão, tentando sustentar o fio tênue da coerência institucional; de outro, o descompasso performático de quem, em vez de erguer o tribunal, parece tropeçar nas próprias palavras.

*Jorge Henrique Freitas Pinho é advogado e livre pensador. Ex-PGR do Estado do Amazonas.

NR - Os textos assinados expressam a opinião dos seus autores. O Poder estimula o livre debate e acolhe o contraditório.

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