Polêmica à moda antiga - quando a Dialética vira refúgio e não Método
16/11/2025 -
Por Jorge Pinho*
“A coerência não requer imobilidade — exige honestidade com o Logos.”
I. A súbita mudança que fala por si
Há momentos no debate público em que o que mais fala é o que não é dito. E poucos são tão reveladores quanto a súbita mudança de tom que ocorre quando um autor, confrontado pelos fatos ou pela reação dos leitores, abandona uma tese sem reconhecer que o faz.
Foi exatamente o que se viu nos dois textos recentes de Natanael Sarmento, publicados em O Poder.
No primeiro, 'A visão distorcida da direita sobre a criminalidade', o tom era militante e taxativo: operações policiais viravam “chacinas”, o Estado, “comitê da burguesia”, e qualquer discordância era reduzida a manipulação ou fascismo. Era o materialismo ortodoxo brandido como espada.
Dias depois, porém, surge 'O Napoleão de Hegel e Marx na guerra contra o narcoestado no RJ' — agora envolto em abstrações filosóficas, metáforas históricas e uma súbita moderação.
A mudança é evidente. O reconhecimento, ausente.
II. O salto sem ponte: quando o silêncio diz mais que o texto
De uma semana para outra, o discurso que era monocromático torna-se matizado, quase hegeliano. Mas não há ponte: há salto. Não há evolução: há substituição.
E o silêncio entre os dois textos fala mais alto do que qualquer citação.
Tudo sugere que o autor percebeu a fragilidade argumentativa do primeiro texto e buscou refúgio na névoa conceitual. Mas filosofia não é cortina: é luz. E a luz não serve para disfarçar recuos — serve para reconhecê-los.
Usar Marx como véu e Hegel como maquiagem não confere profundidade: apenas amplia a sombra que encobre o que deveria ter sido dito.
III. O problema não é mudar — é fingir que não mudou
Bastaria uma frase simples — e grandiosa:
“Revisei minha posição diante das críticas e dos fatos.”
Isso não diminuiria ninguém. Pelo contrário: engrandeceria. Seria a dialética em ato — não como ornamento, mas como método.
Sem esse gesto, o novo texto soa como metamorfose silenciosa: pretende continuidade onde houve ruptura. O leitor, sempre mais atento do que se supõe, percebe a mudança que o autor não explicou.
IV. O paralelo inevitável: do articulista ao Supremo
Esse fenômeno — mudar sem assumir — tem se tornado comum em setores progressistas e encontra eco em episódio recente no STF.
No julgamento envolvendo Bruno Calabrich, André Mendonça citou serenamente voto anterior de Dias Toffoli. Nada mais republicano.
Mas Toffoli reagiu como quem vê seu próprio fantasma: irritou-se, acusou o colega de deturpação e proclamou:
“Vossa Excelência interpreta o meu voto, e eu interpreto o seu.”
Tradução: só eu posso reinterpretar o que fiz — quando me convém fazê-lo.
É o mesmo mecanismo: negar ao outro o direito de interpretar o ato público. No articulista, o texto vira território privado; no ministro, o voto perde sua natureza republicana.
Com toga ou sem toga, a patologia é uma só: o casuísmo da opinião.
V. O vício intelectual de proteger a própria palavra
O que une esses episódios é claro:
1. afirmam com força;
2. recuam sem admitir;
3. irritam-se quando confrontados com o próprio texto;
4. tratam interpretação alheia como ofensa;
5. fazem da hermenêutica defesa emocional;
6. trocam princípio por temperamento.
Isso não é dialética — é conveniência travestida de evolução.
VI. A síntese que a filosofia exige
A verdadeira dialética exige reconhecer a própria contradição. Sócrates nos ensinou que o pensamento começa quando admitimos não apenas o que ignoramos, mas também nossos equívocos.
Sem esse gesto inaugural, não há antítese; sem antítese, não há síntese. Apenas fuga.
O segundo texto de Natanael teria grande mérito se viesse acompanhado desse reconhecimento. Sem ele, sobra apenas reposicionamento retórico — não evolução.
E repete-se o velho vício marxista: diagnóstico ruidoso, contundência inflamada e ausência de solução concreta. É filosofia encenada, não praticada.
O leitor termina onde começou: diante de um problema reenquadrado, não transformado. E a dialética exige mais: exige construir caminhos, não apenas renomear obstáculos.
Sem síntese, a mudança de tom não gera substância.
VII. Epílogo — O princípio que não muda
O restauro do debate público — nas páginas da imprensa ou na Corte Constitucional — depende de um princípio elementar:
Coerência não é nunca mudar; é simplesmente reconhecer quando se muda.
Enquanto isso não acontecer, a dialética será refúgio, e a palavra, instrumento de autopreservação.
A verdade, porém — silenciosa, paciente e implacável — espera.
IX. Pós-escrito — Sobre o Espírito do Diálogo Público
Escrevo este ensaio com o espírito que desejo ver florescer em nosso debate: firmeza crítica sem animosidade. As ideias de qualquer articulista que se aventura pela filosofia e pela política merecem exame atento, porque participam da formação intelectual de nossos leitores.
Se analiso os argumentos de Natanael Sarmento com rigor, não é para alimentar polêmicas estéreis, mas para contribuir com a elevação do pensamento crítico. A filosofia, quando vivida com probidade, não é instrumento de ataque, mas de construção. Minhas palavras dirigem-se às ideias, nunca ao homem.
Para quem ama a filosofia, o diálogo não é formalidade: é privilégio.
E o debate, longe de criar distâncias, nos aproxima do que há de mais nobre em nós — a coragem de pensar juntos com lucidez e responsabilidade.
Com estima e respeito,
Jorge Henrique de Freitas Pinho
Advogado, ex-PGE do Amazonas. Ensaísta e livre pensador.
NR — Os textos assinados refletem a opinião de seus autores. O Poder acolhe o contraditório e o debate respeitoso.

