As aventuras de Cacimba 14 — O poço que lê pensamentos
16/11/2025 -
Por Zé da Flauta*
Era uma quarta-feira de sol embaçado quando Cacimba chegou ao povoado de Pedra Encantada. Trazia consigo um balde velho de corda puída, uma placa de madeira com letras tortas onde se lia: “Poço dos Segredos – mergulhe com cuidado”, e dois macaquinhos nos ombros, um sério e pensativo, o outro inquieto e risonho.
— Bom dia, minha gente! — gritou Cacimba, subindo no coreto da praça com o balde na mão. — Cheguei trazendo o maior milagre da modernidade espiritual: um balde que revela o que o coração tenta esconder!
O povo se aproximou, curioso.
— Jogue esse balde no poço e ele sobe com um bilhete revelando o que você tenta esquecer... disse Cacimba.
— Mas atenção! O poço não julga, apenas revela. Quem tem medo da verdade, que volte pra casa e durma em paz!
Silêncio. Só se ouvia o sussurro das folhas da gameleira.
Um menino foi o primeiro a tentar. Jogou o balde. Quando subiu, havia um bilhete amarelado escrito:
“Você ainda chora pelo pai que não conheceu.”
A mãe dele empalideceu.
Logo outros vieram. E cada bilhete do poço era um espelho íntimo:
— “Você ama quem diz que odeia.”
— “Você inveja sua melhor amiga.”
— “Você sonha em fugir e nunca mais voltar.”
— “Você não acredita mais em Deus, mas finge.”
O povoado entrou em choque.
Cacimba, impassível, tomava cajuína com limão, enquanto os dois macacos discutiam:
— Vende as verdades por quilo! — gritava o da Emoção.
— Enterra esse balde! — sussurrava o da Razão, preocupado.
As beatas ameaçaram interditar o poço com cruzes de palha. Os jovens queriam transformá-lo em rede social. O padre foi consultar os arquivos da paróquia: não havia menção a nada parecido. Era milagre ou embuste?
Cacimba, quando perguntado de onde vinha aquele balde, contou:
— Foi numa noite de eclipse. Sonhei com São Longuinho descendo de paraquedas e me entregando esse balde na beira de um rio invisível. Ele disse:
“Leve pro povo o que eles escondem até de si mesmos. Só assim se cura a alma.” Acordei com o balde no colo e uma dor danada no joelho.
A cidade, em poucos dias, mergulhou num colapso emocional. Famílias se separaram, amizades se fortaleceram, casamentos foram refeitos com lágrimas e abraços. Outros acabaram.

Até que um velho jogou o balde e leu:
“Você nunca foi o que fingiu ser. Mas ainda pode ser quem realmente é.”
Ele sorriu. E começou a tocar rabeca na praça como fazia na juventude.
Na noite seguinte, Cacimba sumiu. Deixou o balde pendurado no poço e um bilhete preso com um prego:
“Quem não suporta a verdade que carrega, vive acorrentado a uma mentira que nem é sua.”
— Assinado: Cacimba, seus macacos, e a água profunda da alma.
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.


