Porto de Galinhas - Os coqueiros que guardam a noite, por Zé da Flauta*
24/11/2025
Os antigos pescadores sabem que, quando a lua nasce grande sobre Porto de Galinhas, os coqueiros despertam. Não balançam só porque venta, balançam porque conversam. De dia, fingem ser árvores comuns. Mas basta a noite cair para que eles alonguem o tronco como quem espreguiça a alma e comecem a falar entre si, em voz de folha roçando.
As vozes
São as vozes mais antigas da praia. Ninguém sabe quantos anos têm. Alguns viram escravos fugirem em jangadas improvisadas. Outros guardam segredos dos portugueses e holandeses. Todos carregam histórias que nem o mar ousa desfazer.

Vigias da praia
À meia-noite, eles assumem seu posto de vigias da praia. Observam cada passo, cada lágrima, cada beijo, cada solidão. Sabem quando alguém chega ali para se despedir da vida e quando alguém chega para começar uma nova. Eles já viram homens ajoelhados pedindo perdão, mulheres rezando para que a maré leve a saudade, crianças dormindo dentro do peito dos pais enquanto o vento embala. Os coqueiros não podem intervir, mas podem sentir. E sentem tudo. Tanto, que às vezes deixam cair um coco de pura emoção. Quem encontra um coco assim, dizem, encontra também uma revelação.
Entre eles, existe um coqueiro mais velho. Curvado, grande, folhas gastas pelo sal.
Chora
Chamam-no de Velho Vigia. Ele é o que mais sabe. Quando alguém chora à beira-mar, é sempre para ele que o vento leva o lamento. E ele guarda. Todos os segredos de Porto descansam em seu tronco, impregnados como sal em pele de pescador. Mas o Velho Vigia tem um defeito, é sensível demais. Quando alguém sofre na praia, ele sofre junto. Já o viram tremer inteiro numa noite em que um homem perdeu o filho no mar. Dizem que as folhas do Velho choraram gotas que não eram orvalho.
Caderno na mão
Certa vez, uma menina veio à praia com um caderno na mão. Sentou-se debaixo do Velho Vigia e contou, baixinho, que a mãe estava doente. Que tinha medo da morte, mas vergonha de dizer. Que só ali, naquele pedaço de areia, ela conseguia respirar. O coqueiro ouviu tudo em silêncio. De madrugada, inclinou-se um pouco mais, como quem tenta abraçar sem ser visto. No dia seguinte, a menina voltou, e encontrou um coco caído aos seus pés, redondo, perfeito. Quando o abriu, não havia água. Havia um papel dobrado, protegido do sal. No papel, uma frase escrita em letras que não eram humanas:
“A tua dor é tua, mas nunca estás só.
O vento te leva. Eu estou aqui.”
A mãe da menina sarou meses depois. E até hoje ninguém explica como aquele papel foi parar dentro do coco. Uns dizem que foi o mar. Outros dizem que foi o destino. Mas os antigos pescadores, que conhecem o idioma do vento, sorriem e respondem:
— Foi o Velho Vigia. Ele escreve com o coração.
Os coqueiros ainda estão lá. Fingindo serem só coqueiros. Mas quem encosta o ouvido no tronco, numa noite quieta, consegue ouvir. Não palavras, mas uma emoção que aperta o peito. Uma certeza suave de que, por mais só que a gente se sinta, sempre há alguém velando por nós.
Coqueiro velho
Seja um santo, seja um anjo, seja o mar, ou apenas um coqueiro velho, que sabe tudo da vida e que continua, noite após noite, guardando Porto de Galinhas com o carinho de quem sabe que todo ser humano é, no fundo, uma árvore procurando raiz.
*Zé da Flauta é músico, compositor, filósofo e escritor.


