A Última Turnê de Gilberto Gil — Despedida no Recife - Crônica, por Romero Falcão*
24/11/2025
Escrevo esta crônica na madrugada, ainda tomado pela energia do show.
Gilberto Gil tem uma ligação antiga e profunda com o Recife. Não foi à toa que escolheu se aposentar dos palcos na Veneza Brasileira. Na terrinha do frevo, o baiano descobriu ingredientes para preparar o Tropicalismo. No final dos anos 60, desembarcara em solo pernambucano e permanecera por mais de trinta dias. Apresentou-se no Teatro do Parque, caminhou pela Conde da Boa Vista com o violão debaixo do braço. Foi a Caruaru, onde se encantara com o som dos Biano — a Banda de Pífanos de Caruaru. Também visitou a Ilha de Itamaracá para conhecer a sonoridade da ciranda de Lia. Banda de Pífanos, Ciranda, Beatles. O belo veneno tomava corpo.

Objeto de Estudo
Já escrevi vários textos sobre shows de Gil. Mas este é histórico. É o último. O último? Que responsa e que sensação estranha. Os dedos tremem. O teclado encolhe. Aos meus 18 anos, me converti ao Gilbertianismo. Mesmo com um coração jovem e tolo, percebera que as letras inteligentíssimas não eram apenas para comprar disco, ouvir, distrair. Eram objeto de estudo, meditação, explosão e silêncio. Isso já seria muito. Mas o criador foi generoso. Além de compositor extraordinário, músico respeitado mundo afora pelas estrelas da rainha das artes, ele domina um violão de outros planetas. Certa vez, meu pai, já velhinho, revelou: “Meu filho, agora eu sei por que você gosta tanto desse preto. Ele é um artista completo.”
Alma de Bebê
No sábado, dirijo-me ao Classic Hall com a pulsação da juventude. Sim, eu sei, não sou mais um caniço de carne nova. Agora, sou árvore velha que se anima com a chegada de pássaros musicais. Gil sobe ao palco com talco e alma de bebê — bebê de 83 anos. Vitalidade de menino, todo de branco. Não parece real; parece uma entidade, preto velho, magia, mistério, brilho de todos os orixás. O canhão de luz se apequena ante a luminosidade da família Gil e dos amigos de estrada. Todos de branco. Todos aqui, no mar do Recife e de Iemanjá. A poderosa Banda é espetáculo à parte. Instrumentos de sopro, corda e percussão levam a plateia para outra dimensão que emociona e arrepia. É hipnótico o trompete e o violão de Gil em “Se Eu Quiser Falar com Deus”. Da mesma forma, “A Paz”, na sanfona de Mestrinho.

O Barulho que Pensa e Dança
O repertório me arrebata como sempre arrebatou: “Palco”, “Realce”, “Esotérico”, “Tempo Rei”, “Drão”, “Extra”, o irreverente e escrachado “Punk da Periferia”. O atualíssimo “Barracos” — “gente estúpida, gente hipócrita”. No final, Alceu Valença canta com o mestre “Aquele Abraço”. Elba Ramalho surge para juntar microfones. “Frevo Rasgado” e “Atrás do Trio Elétrico” fecham as cortinas. Gilberto Passos Gil Moreira se despede de uma festa que dura quase três horas. Festa que cruzou continentes. Acendeu alegria ancestral no Japão. Fez a frieza europeia dançar, balançar diante da grandeza da música brasileira. Li que Victor Hugo disse, "A música é o barulho que pensa". Gilberto Gil é o barulho que pensa e dança.
Esperança na Humanidade
Nem me dou conta da falta de espaço — sequer um palmo para mexer os sapatos. Na minha mocidade não havia celulares nem rasantes de drones. A concentração no artista era total. Mas a tecnologia me permite filmar, guardar para o dia seguinte esse ET disfarçado de gente. A turnê Tempo Rei teima em não terminar. O violão de Gil renova meu tempo, minha esperança na humanidade.
*Romero Falcão é um cronista que se arrisca a fazer poema torto.
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