O espírito absolutista que assombra a humanidade, por Jorge Pinho
24/11/2025
Da lavadeira às Supremas Cortes do mundo: globalismo, progressismo e o novo absolutismo judicial
1. Preâmbulo – Tereza lavadeira e a palavra “absoluta!”
Minha mãe sempre foi mulher dada a uma boa prosa, de escuta generosa e olhos atentos, daqueles que colhem mais do que o interlocutor deseja entregar. Era ela quem recebia Tereza, a lavadeira que nos visitava duas vezes por semana.
Tereza chegava cedo, carregava na cabeça a trouxa de roupas e, no coração, a coragem de quem luta pela sobrevivência. Enquanto esfregava com vigor as calças e camisas da casa, punha também o mundo em dia com minha mãe.
Sentença
Numa dessas manhãs, com o sabão ainda fresco nas mãos e os olhos em brasa, Tereza pronunciou uma sentença que ressoa em minha memória até hoje:
— Me separei, dona Wandeth. Num aceito mais ordem de homem nenhum. De hoje em diante, eu sou é absoluta, absoluta!
Mamãe, serena, respondeu apenas:
— Tereza, Deus conserve.
Eu, menino, não compreendi tudo na hora. Mas aquela palavra — “absoluta” — parecia maior do que o corpo não tão franzino da lavadeira. Era como se ela tivesse invocado uma coroa invisível, sentando-se no trono de um império interior. Não queria mais ser mandada, mas, sem perceber, talvez desejasse agora mandar.
Mais tarde compreendi: o absolutismo não é apenas um regime político. É um estado da alma. Surge quando o desejo legítimo de autonomia se transmuta em vontade de domínio. Quando a liberdade deixa de ser convivência e se converte em soberania solitária.
Foi ali, entre roupas ensaboadas e palavras ditas com fogo, que aprendi a suspeitar dessa tentação eterna: a de ser “absoluto”.
2. O absolutismo: a ilusão da unidade encarnada
A humanidade, em sua vertigem pelo sentido, muitas vezes confunde ordem com uniformidade e paz com submissão. Assim nasceu o absolutismo político: a crença de que é preciso haver um centro incontestável para que o mundo não se dissolva.
Encarnou
Luís XIV, o Rei Sol, encarnou esse arquétipo com perfeição teatral. Ao afirmar “O Estado sou eu”, não fazia apenas política: fazia metafísica. O rei absoluto é o substituto terrestre de Deus, ou seu reflexo centralizado. É a ideia do Uno encarnado no corpo de um homem.
O problema? Quando o Uno se faz carne, toda multiplicidade se torna heresia. Toda divergência, crime. A tentação do absolutismo é a promessa de estabilidade total que, na prática, suprime a vida plural.
3. La Boétie e a servidão voluntária
Mas por que os homens se submetem? A resposta não está apenas na força. Está no desejo.
Étienne de La Boétie, aos 18 anos, escreveu:
“Resolvei escrever sobre essa estranha servidão voluntária: como pode ser que tantos homens, tantas cidades, tantos povos sofram por vezes um tirano só, que não tem poder senão aquele que lhe dão?”
Tirania
A tirania é, em grande parte, consensual. Há um conforto infantil em obedecer, um consolo secreto em transferir a própria autonomia. Por isso o espírito absolutista nos ronda: ele nos promete ordem em troca de liberdade.
Tereza, ao proclamar-se “absoluta”, não sabia que repetia os ecos do trono. Desejava não mais ser mandada. Mas quem nunca, ao livrar-se de um tirano, não se tornou um?
4. Iluminismo e a promessa de limites
O Iluminismo tentou quebrar essa roda. Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros desferiram lanças contra o dogma do trono sagrado. Nasceu a ideia de contrato social, de divisão de poderes, de cidadania racional.
Montesquieu, com rigor, afirmou:
“Todo homem que tem poder é levado a abusar dele; ele vai até onde encontra limites.”
Daí a necessidade de freios, pesos e contrapesos. Mas a modernidade iluminada cometeu um deslize: sonhou com os déspotas esclarecidos. Reis que usariam a razão para governar em nome do povo, mas sem o povo.
Ainda queríamos um trono. Apenas desejávamos que ele fosse ocupado por um intelectual bem-intencionado.
5. O fracasso do Iluminismo: da promessa à tirania revolucionária
O Iluminismo proclamou liberdade, igualdade e fraternidade como novos fundamentos da política. A razão deveria substituir o dogma, e o contrato social, o trono sagrado. Mas a Revolução Francesa mostrou como essa promessa podia se converter em tirania.
A queda
A queda da Bastilha em 1789 foi celebrada como o fim do absolutismo. Poucos anos depois, porém, o país mergulhava no Terror. Em nome da virtude revolucionária, tribunais de exceção condenavam multidões à guilhotina. A liberdade tornou-se silêncio forçado; a igualdade, unanimidade imposta; a fraternidade, suspeita recíproca.
A Revolução
Ao expulsar o sagrado, a Revolução não eliminou a necessidade de culto: transformou a razão em divindade. Notre-Dame foi convertida em “Templo da Razão”, e a nova fé exigiu sacrifícios sangrentos. O rei deposto foi substituído por outro Uno: o comitê revolucionário, e depois Napoleão, que coroou a si mesmo imperador e espalhou guerras por toda a Europa.
Iluminismo
O Iluminismo, que sonhava libertar, terminou instaurando um novo absolutismo — despótico e ideológico. Sua lição amarga é clara: quando a razão se torna dogma e a liberdade pretende ser absoluta, o resultado é sempre o mesmo — a morte do plural e o retorno do Uno.
6. O século XX e o retorno do Uno
O século XX mostrou que o trono pode ser vestido com farda ou macacão.
Lenin, Stalin, Mao, Pol Pot, Fidel, Chávez, Maduro... cada um, a seu modo, encarnou o sonho do poder absoluto. Justificado não mais por Deus, mas pela História, pelo Partido, pelo Povo. O absolutismo trocou de altar, mas não de vocação.
Hannah Arendt permitiu compreender que o totalitarismo é a tentativa de transformar os homens em funções de uma máquina ideológica.
História
Na China, a história tem feição própria. Ali, a tradição imperial era já absolutista antes do Ocidente sonhar com o Leviatã. Xi Jinping, hoje, é herdeiro direto dessa linhagem. Mas seu império é digital, vigilante, algorítmico. O Partido é o novo trono. A distopia é administrativa.
7. Século XXI: os novos tronos globais
Hoje, o espírito absolutista não vive apenas em tiranias confessas. Ele se insinua em quatro projetos globais:
O globalismo progressista ocidental, com suas ONGs, suas narrativas unificadoras e sua vontade de padronizar consciências em nome do bem.
A plutocracia chinesa, que combina tecnologia, autoritarismo e capital de Estado numa simbiose assustadora.
O islã político radical, que sonha com um califado transnacional onde leis humanas cedam lugar à interpretação literal do sagrado.
A juristocracia, fenômeno mais sutil e insidioso: tribunais constitucionais que se transformam em Constituintes permanentes, anulando parlamentos e governos eleitos.
8. A juristocracia global
O termo, cunhado por Ran Hirschl, designa a ascensão dos tribunais como novos soberanos globais. Não aplicam apenas a lei: escrevem-na. Não interpretam apenas a Constituição: tornam-se a própria Constituição.
Estados Unidos: a Suprema Corte moldou políticas sobre aborto e casamento sem passar pelo Congresso.
Canadá: com a Charter of Rights, juízes derrubaram restrições ao aborto e orientaram a legalização do casamento homossexual.
Europa: a Corte Europeia de Direitos Humanos impõe políticas migratórias e culturais a países soberanos.
Israel: desde a “Revolução Constitucional” de Aharon Barak, a Suprema Corte se comporta como Constituinte permanente.
América Latina: Colômbia, México e Argentina usaram cortes para impor políticas progressistas contra parlamentos eleitos; já na Venezuela, o Judiciário tornou-se braço armado do chavismo.
Índia: a basic structure doctrine permite invalidar até emendas constitucionais votadas pelo Parlamento.
Novos tronos
Em todo o mundo, tribunais passaram a agir como novos tronos. Não precisam de coroas nem de exércitos: bastam princípios vagos, linguagem moralizante e a aura de guardiões da democracia.
Mas, quando instrumentalizados pelo poder político, revelam sua face mais brutal: a toga como máscara da tirania.
9. O poder de dizer o direito – quando o guardião se torna soberano
Em todas as nações civilizadas, a burocracia estatal é regida pela lei. Mas quem define, em última instância, o que é a lei? Esse poder de interpretar é o que transforma cortes constitucionais em árbitros supremos.
O risco universal é claro: quando o tribunal se converte não apenas em guardião, mas em fonte única do direito, a lei deixa de limitar o poder e passa a ser sua expressão. O Estado burocrático obedece à lei, mas a lei obedece ao tribunal. É o círculo perfeito do absolutismo moderno.
10. Conclusão – entre a toga e a liberdade
O desejo de Tereza, a lavadeira, era compreensível: queria dignidade, queria ser “absoluta” sobre a própria vida. Mas quando esse desejo se alastra sobre tribunais ou organismos internacionais, o resultado é tirania.
Espírito absolutista
Hoje, o espírito absolutista veste toga. Juízes se tornam reis sem trono, legisladores sem voto, constituintes vitalícios. O que antes era exceção tornou-se regra.
Liberdade não é alívio. É risco. Como lembrava Edgar Morin, o pensamento complexo exige aceitar a incerteza, o contraditório, o dialogal. Quando um tribunal promete estabilidade absoluta, oferece apenas a paz dos cemitérios da política.
11. Epílogo – o último disfarce do absolutismo
Do trono dourado dos reis às salas solenes das supremas cortes, o absolutismo sempre buscou nova máscara. Hoje veste toga e fala em nome da democracia. Mas ao agir contra sua essência, revela o impulso ancestral: o Uno que sufoca o plural.
Nenhuma república resiste quando a soberania popular se curva a intérpretes vitalícios. Nenhuma democracia sobrevive quando a lei se torna refém do humor dos tribunais. O absolutismo togado não é exceção local: é ameaça global.
12. Pós-escrito – quem financia a ascensão da juristocracia
A juristocracia não nasceu do acaso. É fruto de redes de poder que descobriram no ativismo judicial um caminho mais eficaz que o voto. Fundações progressistas, ONGs internacionais, organismos multilaterais e universidades de elite investiram na formação de magistrados convencidos de que são protagonistas iluminados da história.
Ideologia
A ideologia tornou-se moeda mais valiosa que o dinheiro: não é mais preciso comprar juízes, basta convencê-los de que salvarão o mundo se governarem em nome da lei que eles próprios reinventam.
13. Nota final ao leitor – o chamado à resistência civilizacional
Estas páginas não foram escritas apenas para denunciar, mas para convidar. A juristocracia não é conceito acadêmico: é ameaça concreta que molda o destino de nações. Sempre que o poder se concentrou num Uno absoluto, o resultado foi o mesmo: morte do plural e submissão.
A resistência que se exige de nós não é apenas política ou institucional. É cultural e espiritual. Como lembrava La Boétie, o tirano só existe porque encontra quem o sirva.
Este é o chamado: não aceite que sua liberdade seja tutelada por intérpretes vitalícios. Entre a toga e a liberdade, a escolha é nossa — e dela depende o futuro da República.
(*) O autor é advogado, Procurador do Estado aposentado, ex-Procurador-Geral do Estado do Amazonas e membro da Academia de Ciências e Letras Jurídicas do Amazonas.
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