
GOL DE LETRA – Coluna Semanal - ALFONSÍN, MILEI, TANCREDO E O ESCÂNDALO DA MANDIOCA
11/12/2023 - Jornal O Poder
Roberto Vieira
Médico e cronista
Setenta e cinco mil pessoas se reúnem no estádio do River Plate em apoio ao advogado Raul Alfonsín, candidato da União Cívica Radical. Contra a ditadura militar e contra os peronistas, Alfonsín promete uma nova Argentina saída das trevas da guerra suja e da derrota nas Malvinas. Naquele 1983, os portenhos completam 53 anos de conflitos políticos, onde reinaram dezesseis presidentes militares e oito civis. Em todos esses anos, apenas dois presidentes concluíram seu mandato: os generais Agustín Pedro Justo (1932/1938) e Juan Domingo Perón (1946/1952). Neste domingo, 10 de dezembro de 2023, Javier Milei assumiu a presidência da Argentina, exatos quarenta anos após Raúl Alfonsín também chegar ao poder. A posse de Alfonsín pôs um ponto final em sete anos de ditadura argentina. Ambos, Milei e Alfonsín chegam à presidência nos braços de uma economia em frangalhos. Alfonsín herdou 400% de inflação. Milei, 140%.
MAÇONARIA E THATCHER
Vale tudo para tirar Alfonsín do páreo em 1983. A constituição argentina estabelece que o chefe do governo federal pratique o culto católico apostólico romano. Pois, o jornal peronista LÍNEA surge no pedaço, afirmando ter provas de que Alfonsín é maçon. O advogado seria ‘Grande Eleito prefeito e sublime maçon’. O candidato presidencial aceitaria ordens de sua instância superior, o duque de Kent, da Grande Loja Unida da Inglaterra, pecado semelhante ao de Javier Milei se declarar fã de Margaret Thatcher na véspera das eleições de 2023.
TANCREDO NEVES
No dia 30 de outubro de 1983, enquanto os argentinos estão votando para presidente e o estado de sítio no país vizinho é suspenso, o governador Tancredo Neves admite pela primeira vez a hipótese de vir a disputar a sucessão do presidente Figueiredo: ‘Mas só em eleições diretas e, mesmo assim com a missão de sacrifício, para cumprir demanda partidária’. Tancredo volta a criticar as eleições indiretas, porque o Colégio Eleitoral seria uma mistificação.
PERONISMO
Em 1983, os líderes do Partido Justicialista (peronistas) ficam perplexos. Alfonsín teve 52% dos votos e Italo Luder apenas 40%. Era a primeira derrota do peronismo em eleições nacionais desde que o caudilho Juan Domingo Perón ganhou a presidência em 1946. Pelos padrões argentinos, a eleição de 83 é um massacre eleitoral. Como a vitória de Javier Milei em 2023. No Brasil, o presidente Figueiredo assina decreto reajustando o salário mínimo em 64,2%. Um trabalhador nordestino vai botar 50 mil cruzeiros no bolso todo mês. Milagre da inflação.
VENEZUELA E PEDIATRIA
Enquanto Alfonsín é eleito, a Venezuela vai às urnas democraticamente para eleger seu presidente. Doze candidatos lutam pelo cargo entre impropérios e acusações de corrupção. Tem militar reformado, metalúrgico, advogado e até pediatra. O país vizinho comemora 25 anos de democracia após a derrubada do general Marcos Perez Jimenez. Será a sexta eleição ininterrupta da Venezuela, para inveja dos brasileiros que estão desde 1960 só elegendo síndico de prédio. Com a vitória oposicionista, o Dr. Jaime Lusinchi, o pediatra mencionado anteriormente é eleito, as forças armadas venezuelanas dão o ar de sua graça dizendo que garantem a posse. O ministro da defesa, general Humberto Alcalde, sorri satisfeito: somos um modelo para o continente!’.
MAJOR FERREIRA
O superintendente da polícia federal Romeu Tuma, viaja para Nova Iorque em missão especial. Vai atrás do ex-major da Polícia Militar de Pernambuco, José Ferreira dos Anjos, mandante do assassinato do procurador Pedro Jorge de Melo e Silva. O antigo militar foi condenado a 31 anos de prisão. Ferreira fugiu do Esquadrão de Cavalaria Dias Cardoso, em Recife, quinze dias antes da posse de Alfonsín, após ter sido expulso da Polícia Militar pelo governador Roberto Magalhães. Ferreira pode estar nos Estados Unidos, onde sua esposa é proprietária de uma boutique em Miami, segundo jornais pernambucanos. O assassinato do procurador aconteceu na investigação do que ficou conhecido como Escandalo da Mandioca. Entrementes, em São Paulo, o presidente Figueiredo desmente os jornalistas e afirma: ‘eu gosto do cheiro do povo!’.
O ASSASSINO GEORGE BUSH E O BEIJOQUEIRO
Raul Alfonsín recebe a faixa presidencial das mãos de Reynaldo Bignone, último presidente da ditadura militar. Bignone deixa a Casa Rosada melancolicamente, como Alberto Fernández, neste domingo, 10 de dezembro de 2023. O vice-presidente norte-americano, George Bush, é recepcionado pela multidão de argentinos na posse sob os gritos de ‘assasssino, assassino’. Mesmo tratamento dado ao chileno Miguel Schwiter, enviado de Pinochet. Aproveitando o cochilo da segurança, o beijoqueiro brasileiro - nascido em Baguim do Monte, Portugal - José Alves de Moura tenta tascar um selinho em Alfonsín, o qual é salvo no instante final pela rapidez de um policial.
O FUTURO DO PASSADO
Raul Alfonsín consegue completar seu mandato de seis anos, mas é incapaz de resgatar a Argentina do fundo do poço. Após declarar guerra à repressão, levar militares a julgamento, criminalizar terroristas personagens da guerra suja, o político é tragado pelos motins dos Carapintadas, fracasso dos Planos Austral e Primavera, além da hiperinflação. O resultado é a derrota em 1989 do seu partido para o peronista Carlos Menem. Já Tancredo Neves consegue se eleger presidente do Brasil, só que por via indireta. Tancredo não chega a assumir o cargo. Uma diverticulite encerra sua vida. O Brasil só verá eleições diretas para presidente em 1989. Justamente o ano do adeus de Raúl Alfonsín. E do adeus de Javier Milei como goleiro do Chacarita Juniors, clube de Buenos Aires. Carajo!