
Sempre seremos dez, artigo/homenagem por José Almino de Alencar*
05/02/2024 - Jornal O Poder
Por um longo período não tivemos pátria. Vivíamos o sentimento de identidade, a intimidade da
língua, a memória conjunta, o senso de humor, o amor da conversa, o entendimento espontâneo,
sobretudo, na cumplicidade fraterna. Ela nos acudia, acolhia, confortava e celebrava. Éramos os Arraes, e
o pai comum fazia figura de uma referência diversa, separada dessa coletividade que éramos.

Somos dez
Quando
dizíamos: nós somos dez, gozávamos da surpresa do interlocutor diante do nosso tamanho e
saboreávamos certo orgulho e comoção patrióticos. Éramos, somos um território, agora desmembrado,
e nunca este verbo – com a sua conotação prosaicamente anatômica – me pareceu tão realista e tão
cruel.
Carlos Augusto Arraes de Alencar, e não me importa aqui que ele tenha, na idade adulta,
escolhido abreviá-lo para Augusto, porque é o nome que me vem com a mesma integridade da imagem
guardada dos longes da minha infância, quando o vi entrando, pelo oitão da casa de minha avó, em um
dia de chuva, nos braços de minha mãe. Era o terceiro filho; e quinze anos depois estávamos completos,
tornávamo-nos dez.

Muitos dons
Resumi-lo, não há como; sobretudo ainda sob o peso da irrealidade da sua morte que me
acompanha; ainda ofuscado pelo brilho da sua coragem dos últimos tempos quando nos comandou a
todos na sua luta pela sobrevivência. Ao me dispor a falar dele, escolho ao acaso uma das suas
qualidades primeiras, a que nos une todos aqui neste momento: o dom da amizade.
Lembro-me de um episódio. Encontrávamo-nos internos em colégio de Nova Friburgo, ele com
onze anos, eu com quinze. Compartilhávamos as cartas que vinham de casa e numa delas – dirigindo-se
a Gusto, infeliz com a separação dos seus amigos do Recife – meu pai falava de uma visita que havia feito
quando criança, acompanhando meu avô a um fazendeiro no Sertão do Araripe. Em determinado
momento, o fazendeiro diria: “Seu Zé Almino, na minha vida eu só tive um amigo e dois camaradas.”
Lugar incomum
Surpreendi-me quando, logo em seguida, o meu pai voltou-se contra lugar-comum contido no aforismo
(também presente em fórmulas como “Amigos se contam como os dedos na palma de uma mão”, etc.) e
disse algo assim: que aquilo era a expressão de uma vida limitada por um meio tosco, rudimentar, com
poucas oportunidades; que esperava que Gusto fizesse durante a sua vida muitos amigos em locais e
circunstâncias diversos; fruto de uma existência vasta de experiência e conhecimento.
E na sua vida breve, porém vasta e variada, Gusto fez muitos e muitos amigos e inúmeros
camaradas. Amizades construídas, sobretudo mantidas, ao longo do tempo, em vários lugares, em
línguas diversas.

Fidalguia
O convívio humano lhe era uma continuação da personalidade, uma qualidade
espontânea, mas a qual ele também dedicava inteligência, perseverança e organização que se revelavam
na lembrança singela do dia de aniversário de cada um, na escolha minuciosamente personalizada dos
presentes e na solidariedade generosa, às vezes generosíssima – frequentemente, sou testemunha,
antecipando-se a uma solicitação – e sempre discreta. Um fidalgo – é o qualificativo antigo, patriarcal e
pernambucano que me vem agora – na sua casa; ou melhor, tinha as qualidades que gostaríamos que os
fidalgos realmente tivessem. Recentemente, Guel comentava comigo que o visitante – por mais
inesperado que fosse – tornava-se completamento o centro da sua atenção, a despeito do que ele estivesse fazendo na hora que o recebia. Já no fim, sobretudo em dias mais difíceis eram raras as minhas
visitas que não recebiam de sua parte um descabido “Obrigado, Zé”, no final.
Mercador do mundo
Esta virtude da convivência, a sua inteligência dos homens, muito deve ter lhe servido – na
verdade, provavelmente elas correram de par – na sua bem-sucedida trajetória profissional. “Sou
comerciante. É o que respondo quando perguntam o que eu faço. Compre e vendo coisas”, disse-me ele
um dia ao manifestar o seu desagrado com a palavra empresário que pensava, com razão, que já não
significaria mais nada.
Continuando a sua provocação diria: juntava uma coisa com outra. Tomava o seu conhecimento
do mundo, o seu saber sobre o mercado, a apreciação do problema concreto e das pessoas envolvidas e
com a imaginação de um artista e o rigor de um engenheiro produzia a idéia de um negócio a ser
perseguido (às vezes, anos a fio) com a paciência de não sei mais quem.
Foi precoce e bem-sucedido nos negócios. Quando voltou ao Brasil, estava mais próspero – com
recursos conquistados lá fora – de que muitos representantes das elites de seu Estado natal – embora
estes últimos fossem herdeiros de famílias, estivessem implantados em terra conhecida, tivessem
recebido benesses de bancos oficiais e até, eventualmente, gozado da proteção do regime militar. Um
deles, aliás, típico exemplo do que acabo de dizer, comentou comovido, mas bem-humorado no seu
enterro, que em um dia de destempero Gusto lhe havia dito a propósito: “Vocês são um bando de
incompetentes.”
Império do riso
No entanto, o nosso irmão – o irmão de Pedro, o irmão de Mariana, o irmão de Lula, o irmão de
Nena, o irmão de Marcos, o irmão de Maurício, o irmão de Guel, o irmão de Ana, o meu irmão – não
cabe em uma lista de atributos. Para mim, ele será sempre também aquele menino de onze anos que me
esperava no colégio interno à hora do jantar e diferentemente de seu irmão mais velho, apresentava-se
sempre, depois de um dia inteiro, com a roupa impecavelmente limpa e o cabelo penteado. Ele será o
das conversas infindáveis com meu pai, o que eu por vezes surpreendi, o olhar feliz e orgulhoso na sua
casa, com a sua mulher Sandra e com os seus filhos: Miguel e Antônio. Ele será também (e às vezes
penso, sobretudo) o riso: o riso, meu Deus, o riso que sempre reinou em nosso território.
NR - Artigo publicado originalmente no Jornal do Commercio em 23/04/2010, em homenagem a Carlos Augusto Arraes, falecido em 26/03/2010. Os intertítulos foram colocados pela editoria.
* José Almino de Alencar é escritor. Foi presidente e é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Confira mais notícias
Ao utilizar nosso site e suas ferramentas, você concorda com a nossa Política de Privacidade.
Jornal O Poder - Política de Privacidade
Esta política estabelece como ocorre o tratamento dos dados pessoais dos visitantes dos sites dos
projetos
gerenciados pela Jornal O Poder.
As informações coletadas de usuários ao preencher formulários inclusos neste site serão utilizadas
apenas para
fins de comunicação de nossas ações.
O presente site utiliza a tecnologia de cookies, através dos quais não é possível identificar
diretamente o
usuário. Entretanto, a partir deles é possível saber informações mais generalizadas, como
geolocalização,
navegador utilizado e se o acesso é por desktop ou mobile, além de identificar outras informações
sobre
hábitos de navegação.
O usuário tem direito a obter, em relação aos dados tratados pelo nosso site, a qualquer momento, a
confirmação do armazenamento desses dados.
O consentimento do usuário titular dos dados será fornecido através do próprio site e seus
formulários
preenchidos.
De acordo com os termos estabelecidos nesta política, a Jornal O Poder não divulgará dados
pessoais.
Com o objetivo de garantir maior proteção das informações pessoais que estão no banco de dados, a
Jornal O Poder
implementa medidas contra ameaças físicas e técnicas, a fim de proteger todas as
informações pessoais para evitar uso e divulgação não autorizados.