
Gol de Letra – Coluna Semanal por Roberto Vieira* - Histórias da dengue em Pernambuco
11/03/2024 - Jornal O Poder
O Brasil ultrapassou 1,3 milhão de casos de dengue em 2024. O país também chegou ao número de 343 mortes este ano, segundo dados do Ministério da Saúde. O antológico livro de DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS, do Mestre Ricardo Veronesi, já ensinava aos médicos no século passado sobre os mais de 80 tipos de arbovírus conhecidos no planeta, entre eles os vírus da Febre Amarela, Dengue e Chikungunya. Estes vírus se multiplicam nos tecidos dos artrópodes hematófagos, sendo transmitidos através da picada dos mesmos aos vertebrados susceptíveis, como eu e você, caro leitor quase indefeso. Quem é pernambucano e tem mais de 50 anos já dormiu pelo menos uma vez na vida debaixo de um mosquiteiro.
O homem e o Aedes
Para a imensa maioria dos arbovírus, a existência do ser humano é secundária. Eles sobrevivem mesmo sem nós. A exceção é justamente o vírus da dengue, o qual caprichosamente só gosta de se transmitir através da picada de homem para homem na picada do Aedes aegypti. Tanto faz se no meio rural ou no meio urbano.
Navios Negreiros
Mosquito proveniente da África, o Aedes chegou ao Brasil nos navios responsáveis pelo tráfico de escravos. Ignorado por Castro Alves em seus poemas libertários, o Aedes se reproduziu alegremente por estes trópicos, mas encontrou feroz resistência dos nossos avós, tendo sido erradicado do Brasil nos anos 1950 na esteira do combate incessante à Febre Amarela desde os dias de Oswaldo Cruz e das ações sanitárias de alguns heróis esquecidos da nossa história como Artur Coutinho.
1923
A DENGUE surge meio escondida nas páginas dos jornais pernambucanos em 1923. Em sessão solene da Academia de Medicina, no Rio de Janeiro, o Dr. Parreiras Horta afirma que a epidemia que grassa pela Cidade Maravilhosa nada tem de gripe e tudo tem de uma doença chamada DENGUE. Pouco depois, os habitantes de Salvador ficaram alarmados com a notícia de uma epidemia de DENGUE no navio de guerra francês Antares, navegando em águas soteropolitanas. Mas era tarde. Os marinheiros já tinham conhecido a Baixa do Sapateiro. As notícias deixam sobressaltados os pernambucanos ainda lembrados da terrível Gripe Espanhol de 1919. Tempos depois, em nosso estado, na publicação dos Archivos de Assistencia aos Psycophatas de Pernambuco, a palavra DENGUE é destrinchada. Dengue, antiga Ndengue, provém do sudanês e serve para classificar crianças chorando ou fazendo birra. Em nosso estado, DENGUE substitui há muito tempo a expressão DENGO. Até mesmo para descrever as moçoilas da sociedade que saiam brincando nas festas fazendo DENGUE.
Artur Coutinho
Em 12 de janeiro de 1953, os estragos causados pelos mosquitos em Recife eram tão grandes que o secretário de saúde, Artur Coutinho, resolveu declarar guerra ao’culex aegypti’, segundo os jornais, nome de batismo do nosso amigo mosquito em 1762. A mídia ignorava que culex era coisa do passado desde 1818 quando o gênero Aedes foi descrito. Atendendo ao chamado de Artur Coutinho foi um tal de aumento da fabricação de mosquiteiros, destruição de focos de larvas, vigilância dos depósitos de água, limpeza dos quintais e educação sanitária do povo. Tudo muito parecido com as campanhas na televisão dos dias de hoje. Com uma diferença apenas. Dois anos depois, Pernambuco estava livre do Aedes. Acredite se quiser.
Xuxa
Durante 33 anos, a Dengue foi uma curiosidade histórica no Brasil, até que, no Carnaval de 1988, o Ministério da Saúde lançou campanha contra o Aedes aegypti. A Dengue entrou no Brasil em 1987 através da fronteira do Paraguai e Bolívia desencadeando epidemia no estado de São Paulo. Aproveitando a onda da epidemia, a apresentadora Xuxa lança os bonecos Praga e o Dengue no seu programa e traz a Dengue brincalhona aos nossos palcos. A SUCAM (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública) e o Presidente Sarney também entram nas propagandas pedindo ao povo que tampe as caixas d’água, jogue fora pneus velhos e se livre de garrafas e latas vazias. Argentina pede ao Brasil que nossa campanha seja traduzida para o castelhano para que seja usada com os mosquitos dos hermanos. Enquanto isso, no Ceará, surge a primeira favela batizada de DENGUE.

Sucam
A SUCAM foi criada por decreto 66.623 do dia 22 de maio de 1970, juntando as campanhas de erradicação da malária e da varíola. Em duas décadas foi travando combates desiguais com a leishmaniose, esquistossomose, peste, filariose e tracoma, além da dengue. Doenças com a varíola foram erradicadas do planeta. O tracoma deixou de ser um problema de calamidade pública no Nordeste. Mas apesar do trabalho incessante e de uma relativa melhoria nos padrões econômicos do povo brasileiro, muitas delas permanecem na nossa porta. Quando a SUCAM começou a procurar o Aedes em Recife foi um Deus nos acuda. Havia mosquito no cais do porto, Afogados, Jiquiá, Mustardinha, Ipsep e até mesmo mosquitos que tinham se bandeado para o interior em Igarassu, Barreiros, Ribeirão e Petrolina. Foi quando Artur Coutinho foi relembrado na figura do sanitarista Carlos Alberto Couceiro, nos anos 1980 por estas bandas.
1990
Em 1990, segundo a própria SUCAM, o Brasil conhecia apenas o DENGUE tipo I. O órgão solicitou aumento no contingente de funcionários ao governo federal para conter a ameaça de um surto ainda maior que o de 1988. Num ambiente de crise financeira brutal, o governo Collor demitiu 45 funcionários e outros 190 foram colocados em disponibilidade. Ao mesmo tempo, Collor cria a Fundação Nacional de Saúde e enfraquece ainda mais a SUCAM. Não havia gasolina para os automóveis e as campanhas contra esquistossomose e filariose andaram para trás. O caos se instalou e nos leva até a atual epidemia em 2024, já que a saúde pública se faz com planejamento e eterna vigilância. O povo pernambucano? Faz de tudo para não perder a alegria de viver. Tanto que em 1996, na Ladeira da Misericórdia, em Olinda, um grupo de amigas saiu fantasiada de Supergirl no Combate à Dengue. Levando na piada o surto da doença na Marim dos Caetés. Hoje, o Brasil tem DENGUE tipo I, II, III e IV. Esse mesmo que vos escreve contraiu DENGUE enquanto trabalhava no Hospital da Restauração nos anos 1990. Pouca gente sabe, mas o quarto dos médicos daqueles tempos tinha uma média de 40 mosquitos por profissional da medicina. O que diria desse o fato o Mestre Artur Coutinho?
*Roberto Vieira é médico e cronista