
Entrevista do domingo - José Paulo Cavalcanti Filho conta coisas incríveis e pouco conhecidas sobre o período militar.
13/04/2024 -
Nesta segunda-feira, 15/04, faz 60 anos que os militares chegaram ao governo. Nessa entrevista, o jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho registra alguns momentos que resumem o espirito obscuro e a caminhada traumática do regime militar.
Perfil do entrevistado
Ele é escritor internacional. Integra três respeitáveis academias de letras - a Pernambucana, a Brasileira e a de Lisboa, que tem alcance nacional. Ele estudava Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Presidia o Diretório Acadêmico. Veio o Ato 5. Foi cassado, impedido de estudar por 5 anos. Não se conformou. Seu pai, advogado famoso, identificou brechas legais. Já no ano seguinte Zé Paulinho, como é tratado pelos amigos e mencionado por Deus e o mundo, estava de volta, dessa vez na UFPE. Um acinte aos militares. Fizeram uma lei punitiva, absurda, draconiana e deixaram furos. O regime então reagiu nas sombras. Resumindo: Zé Paulinho foi estudar em Harvard. Muito depois, já advogado de sucesso e escritor iniciante, foi Secretário-Geral do Ministério da Justiça, com Fernando Lyra. Ocupou o cargo após a saída de Lyra. Esse, mesmo com pouco tempo, completou sua obra histórica. Lyra, principal artífice da abertura democrática, varreu o entulho da legislação autoritária da ditadura. Com a participacao de Zé Paulinho, entre outros democratas da equipe de Fernando Lyra. Depois, Zé Paulinho integrou a Comissão Nacional da Verdade. É um currículo e tanto. Na véspera da data em que efetivamente os militares ocuparam o governo, com a posse na Presidência da República, em 15 de abril de 1964, do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco o Poder foi ouvir quem viveu, ajudou a extinguir e depois a apurar grande parte da ignomínia praticadas nos subterrâneos do regime.
A entrevista, na sede da Academia Pernambucana de Letras, foi conduzida por José Nivaldo Junior com participação remota de Antônio Magalhães e Severino Lopes.

O Poder - Quando se fala em ditadura de 1964 o que o senhor lembra?José Paulo - passados 60 anos do golpe, e 10 anos do fim de nossos trabalhos na Comissão Nacional da Verdade, vou comentar poucas lembranças emblemáticas. Uma delas: depois de conhecer os fatos, mudou a dimensão que tinha de ao menos dois personagens daquele tempo. Um foi o ditador/ presidente Geisel, que hoje considero apenas um carniceiro. Na Guerrilha do Araguaia, por exemplo, pouco mais de 20 guerrilheiros foram presos sob a promessa de que, depois de prestarem depoimentos, suas vidas seriam garantidas. E acabaram todos mortos. Por ordens superiores. Geisel foi quem deu o nome da operação, “Limpeza”. Limpeza de gente. Daqueles homens e mulheres que ficaram plantados naquelas terras, para sempre.
O Poder - O outro?
JP - Foi o ministro do SNI, Golbery do Couto e Silva. De quem tenho, hoje, impressão positiva. Era alguém diferente, que compreendia bem como a história se escreve. Criou o SNI, não apenas para fiscalizar os opositores do regime. Sobretudo, para controlar os seus, especialmente capitães e majores que não mais obedeciam aos generais. Veja-se, por exemplo, as explosões das bancas de jornais, tentativa de disseminar o terror. Ou o caso do Riocentro, programado para ser um morticínio. Conheço muitas histórias dele. Como, por exemplo, a de quando evitou que Brizola fosse morto.
O Poder - Havia corrupção na ditadura?
JP - É comum se dizer que, naquele tempo, não havia corrupção. Com o exame do que ocorreu, se pode hoje dizer, uma falsa lenda. Sem qualquer dúvida. Pouco depois de 31 de março, já o Brasil conhecia sua primeira Comissão Geral de Investigações – CGI criada por decreto em 1964, extinta no mesmo ano. Ainda não era contra a corrupção. Serviu apenas para demitir servidores públicos que tivessem vitaliciedade ou estabilidade. E que ficaram contra o Golpe, nem seria preciso dizer.
O Poder - Ficou nisso?
JP - Calma, só tomei fôlego. (risos). A segunda CGI, criada em 1968, só foi extinta pelo Decreto 10 anos depois. Sua criação foi justificada para promover o confisco dos bens adquiridos, de maneira ilícita, no exercício da função pública. Ou seja, a própria ditadura confessa que havia corrupção. Por serem tantos casos, era mesmo necessário fazer algo. Definido, o enriquecimento ilícito como “aquisição de bens, direitos ou valores... sem idoneidade financeira para fazê-lo...; “ou quando não houver comprovação de sua legitimidade”.
Esta segunda CGI tinha poderes para apurar quaisquer atos de corrupção. Sem que se conheçam, hoje, as investigações realizadas. Tudo foi destruído. Essa foi a decisão dos poderosos da época, é pena. Mas foram muitos casos. Até porque, diferente fosse, e nem razão haveria para criar uma CGI assim.

O Poder - Alguns casos de corrupção dos militares entraram no anedotário. Pode citar algum?
JP - Aqui mesmo, em Pernambuco, um marechal, diretor da Caixa, enriqueceu apostando com os empresários da construção Fernando Rodrigues e Lynaldo Uchoa de Medeiros. “Aposto um automóvel que não sai o financiamento”, diziam os empresários. Resposta: “Tá apostado”. O financiamento saia, liberado pelo próprio e assim, de aposta em Posta, o marechal enriquecia. Isso tornou-se público, quem corrompe de alguma forma divulga. Quem viveu aquele tempo se recorda.
O Poder - Mas foram casos isolados. Ou não?
JP - A corrupção era ampla, no período. Não para por aí. No início de 1969, começava a nascer a Operação Bandeirantes, a Oban. Pensada para ser o braço clandestino dos órgãos de segurança. E responsável por boa parte das torturas e desaparecimentos forçados que se deram, na época. O ato informal que celebrou sua criação deu-se em 01/7/69, contando inclusive com a presença de figuras das elites políticas. Como Abreu Sodré, Paulo Maluf e empresários de São Paulo.
O Poder - A Oban deu certo?
JP - Tanto foi o sucesso, na versão das forças de segurança, que, em fevereiro de 1970, o major Waldyr Coelho, um dos chefes da Oban, sugeriu, ao Comando do II Exército, a criação de uma Oban específica contra a corrupcão. Que era grande, claro. Mas, santa ingenuidade, a proposta não fez o menor sucesso.
O Poder - o combate aos adversários do regime prosseguiu sem tréguas. Já a corrupção...
JP - correu livre, leve e solta. Sem atingir empreiteiros ou militares que lhes davam cobertura. Talvez porque todos fossem velhos companheiros da Ditadura.
O Poder - Como hoje...
JP - É diferente. Nossas prisões passaram a ser frequentadas, também, por donos de construtoras e agentes políticos, que substituíram, na periferia do poder, aqueles militares. Pena que só por breve tempo. Depois o Supremo decidiu que melhor irem todos para casa. Ou voltar a exercer cargos públicos. Sem esquecer que também estão, hoje, tentando cancelar suas multas. Uma vergonha.

O Poder - Sabemos que muitos inocentes acabaram, direta ou indiretamente, sofrendo muito. As famílias de sequestrados, torturados e Desaparecidos, por exemplo.
JP - Essa lembrança diz respeito a pessoas. Vou mencionar um caso que muito simbólico. Trata-se de dona Luiza Gurjão. Na Comissão Nacional da Verdade, encontramos restos de dois corpos. Um deles, pelas anotações que tínhamos, provavelmente seria de Bergson Gurjão, que desapareceu na Guerrilha do Araguaia. Convidamos sua mãe para fazer o teste do DNA. Dona Luiza, quando chegou, disse ter certeza de ser seu filho. Era mesmo. Ela completou: "Faz muitos anos, descobriram que eu tinha câncer. Com pouco tempo de vida. Mas, aos médicos, disse que só morreria depois de enterrar meu filho. Para mim, era missão. E essa fé acabou recompensada". Foi muito emocionante.
Mais tarde pusemos os poucos ossos que sobraram em caixão com areia. Para ficar mais pesado. E mandamos, bem vedado, para dona Luiza. Foi o velório mais festivo que já se viu. Todos contentes por ver a mãe realizando seu sonho de enterrar o filho. No fim do enterro, pediu a palavra. " Esse é o dia mais importante de minha vida. Aqui está Bergson. Pertinho dele, ficarei eu. Os dois juntos, pela eternidade. Muito obrigado a todos".
O Poder - Puxaaaaa...
JP- Esperem a conclusão. Pouco depois, jantou com a família, foi dormir feliz, em paz, e não acordou.
O Poder - Caramba...
JP - Pois é amigos. A ditadura foi uma tragédia que gerou santos, mártires e deu oportunidade para que milagre s acontecessem.
O Poder - Estamos emocionados.
JP - Imaginem eu.
O Poder - Eu acho que a gente merece...
JP - Desculpem, fui egoísta fumando o tempo inteiro. Vamos degustar juntos?
O Poder - Proposta aceita. Obrigado por seu precioso tempo.

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