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Artigo - Ricardo Rodrigues* avalia a perda de relevância da França no cenário geopolítico

14/05/2024 -

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Na política internacional, não basta querer. Tem que poder, ou melhor, tem que ter poder. E é precisamente isso, poder, que a França, sob a liderança de Emmanuel Macron, vem demonstrando não ter. Isso, pelo menos, é o que se pode depreender dos resultados concretos da política externa idealizada por Macron.

Narrativas retóricas

O curioso é que uma perspectiva inteiramente antagônica se descortina quando atentamos apenas para as narrativas retóricas sobre o assunto. Nelas, Macron é consistentemente retratado como líder inquestionável das decisões geopolíticas da Europa. A cobertura jornalística do pronunciamento que Macron fez, no final de abril, na Sorbonne, é um bom exemplo.






Autonomia estratégica

Em seu discurso, Macron criticou a União Europeia por continuar dependente dos Estados Unidos e da Otan para sua defesa. Para o presidente francês, se a região delega sua defesa e segurança econômica para outras partes do mundo, referindo-se, sobretudo, aos Estados Unidos, a Europa pode simplesmente vir a morrer.
Esse argumento é a pedra fundamental de sua antiga proposta de “autonomia estratégica”, segundo a qual, a Europa não mais ficaria a reboque dos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Ao contrário, perseguiria aqueles interesses que beneficiariam mais diretamente a região, até para que os europeus não terminassem enredados em conflitos que não são seus. Esta proposta continua na mesa, mas nem todos concordam com ela. A Alemanha, por exemplo, prefere investir em sua economia e deixar a defesa aos cuidados da Otan, sob a liderança dos americanos. Contudo, os discursos e as grandes propostas de Macron não conseguem desfazer as mazelas de sua política externa.

Macron e a Guerra da Ucrânia: uma foto que vale mais que mil palavras

Em fevereiro de 2022, antes da invasão russa da Ucrânia, Macron correu para Moscou, achando que poderia negociar com Putin uma forma de evitar o conflito. A iniciativa de Macron foi muito bem recebida pelos franceses, pois parecia indicar que a França ainda desfrutava de prestígio, não sendo, nas palavras do analista Gavin Mortimer, “um mero e insignificante membro de uma Otan liderada pelos Estados Unidos”. Porém, as negociações resultaram em inequívoco fracasso. E não poderia ser diferente. O “timing” para negociar já havia esgotado. Putin já havia, então, decidido pela invasão. A foto divulgada dos dois presidentes separados por uma mesa gigantesca revelou ao mundo a frieza com a qual Macron foi recebido no Kremlin.





Política vacilante

Dali por diante, o esforço de permanecer relevante no cenário geopolítico só vem ressaltando as idas e vindas de uma política externa francesa eminentemente vacilante. O mais recente lance desse imbróglio foi a declaração de Macron de que a Rússia tinha que ser derrotada a qualquer custo, mesmo que a Europa tivesse que enviar tropas terrestres para defender a Ucrânia. Ou seja, de negociador da paz, Macron transformou-se em belicoso inimigo da Rússia. Não precisamos nem ressaltar que a maioria dos aliados ficaram em estado de choque com a declaração.

Fiasco na África

Em nenhuma regão do mundo, o malogro da política externa francesa foi maior do que na África, e particularmente, no Sahel. A região africana do Sahel já protagonizou nada menos que 6 golpes de estado nos últimos 4 anos. Refiro-me às mudanças de regime em Mali, em 2020, no Chade e na Guiné, em 2021, em Burkina Faso, em 2022 e, mais recentemente, em 2023, no Gabão e no Níger. Sendo que todos eles aconteceram sob o manto de uma crescente hostilidade da população local para com a França.

Exploração colonial

Na chamada África francesa, a percepção dominante na população era a de que a França adotou uma abordagem neoliberal nas relações com suas ex-colônias para continuar a explorá-las militar e economicamente. Como explica o historiador Frank Gerits, da Universidade de Utrecht, na Holanda, a política neoliberal de Macron voltada para a África “desbancou o mito de que a França seria um colonizador mais benevolente por estabelecer e manter laços culturais com as elites africanas”. De fato, a estratégia de Macron para a Africa, baseada em forte presença militar e, em termos de assistência econômica, numa ênfase em pequenos negócios, não era o que os africanos queriam. Essa política só serviu para consolidar a opinião prevalente no continente de que o subdesenvolvimento e a pobreza eram produto da exploração neocolonial francesa. Assim, a saída “involuntária” das tropas “neocolonizadoras” francesas desses países passou a ser uma questão de tempo.





Presença da Rússia

Simultaneamente à saída dos franceses, os russos já vinham trabalhando para fincar os pés no espaço estratégico da África que era, até então, ocupado pelas potências ocidentais. Vácuo geopolítico representa oportunidade. E a Rússia perdeu tempo para aproveitar a oportunidade, oferecendo apoio aos novos regimes sem impor condições. Para lá destacou o Grupo Wagner, que logo ganhou o pomposo nome de Corpo da África, além de assessores, armas e um contingente de militares.

O urânio do Níger

O Níger é um dos mais recentes países africanos a se rebelar contra a política externa de Macron. O novo regime expulsou 1.500 militares franceses e mais mil militares americanos que ocupavam uma base americana de drones no país. As boas relações do novo regime com a Rússia garantiram para os russos inúmeros benefícios estratégicos. Primeiro, ganharam acesso aos volumosos depósitos de urânio existentes no norte do Níger. A França dependia desse urânio para suprir 20% das necessidades de suas instalações de energia nuclear. O acesso russo a esse urânio viabiliza, por um lado, a ampliação de sua participação no mercado de energia, mas, por outro, garante o fornecimento de matéria prima para fins militares.

Perda de Relevância

Eu diria que não foi á toa que Macron mudou sua postura com relação a Putin e à Guerra da Ucrânia. Sua atitude belicosa atual contra a Rússia não reflete apenas sua frustração por não conseguir persuadir Putin a não invadir a Ucrânia. Reflete muito mais a perda de espaço geopolítico estratégico. E, como a Rússia ao ocupar esse espaço, na África, escancara para o mundo a perda de relevância da França na cena política mundial.

Autor

*Ricardo Rodrigues é jornalista e cientista político. Escreve sobre assuntos internacionais.

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