
É Findi – A escritora Ana Pottes mostra um novo conto intitulado “Da Nova para a Guia” *
28/06/2024 -
A vida gosta de pregar peças a quem tem bons ouvidos para a escuta alheia. Por que digo isso? Sou dona de um fusquinha conservadíssimo, que está na família desde 1970. O azulzinho é todo aprumado, com peças originais garimpadas nos ferros-velhos do mundo. Até o Carcará” está no lugar pois escapou da sanha adolescente daquela década.
Já falei sobre meu bem maior, agora sobre mim: Sou Alice, tenho pouco mais de 50 e Maria, minha filha, já me deu três netos e nenhum genro. Estou viúva há quase 15 anos, vivendo com a pensão do falecido que parece lençol curto.
Adaptações
Com essa história de modernidade, resolvi cadastrar a mim e meu talismã no Uber, e, pasmem!!! Fomos aceitos, ficamos felizes com a novidade. No final de semana que antecedeu o primeiro dia de trabalho, nos demos uma recauchutada: ele brilhante e cheiroso, eu de cabelos cortados a la Chanel e pintados de castanho claro, tudo para esconder os brancos que, dizem, envelhecem.
O passageiro
Primeira chamada: chego, seguindo as instruções daquela voz do celular a rua dos Navegantes, em Boa Viagem. Ainda bem que tem o aplicativo para meu auxílio. Fico sem bússola nas ruas da cidade e muito mais na Zona Sul. Paro no número 704 e, me chega um homem de pouco mais de 60 anos, vestindo calça de veludo verde com boca larga, acho que era sino, e um rabo de cavalo nos ralos cabelos que lhe restam. Entra sorrindo e, ao sentar, dispara a falar sobre suas aventuras com um fusca. “O coração quase sai pela boca quando lhe vi” e já vai contando sobre a vida de caixeiro viajante a bordo de um possante vermelho. Lá estou ouvindo o quanto rodou pelas cidades do interior, suas aventuras e amassos com as “namoradas” a quem dava carona. Enquanto ouço sobre a vida daquele Don Juan saudoso, recebo outra chamada. Bom que era perto de onde irei deixar o falastrão, ali no Recife Antigo, próximo aquele leão gigante, quase em frente ao prédio da Receita Federal.
A passageira
Desembarcado o antigo conquistador, sigo para a Rua da Guia, número 40, onde me aguarda outro “cliente”. De longe avisto uma mulher vestida de vermelho, cabelos soltos, longos, óculos de sol em um rosto fino e comprido, magra, alta, quase esquálida. Mesmo assim usava saltos altos, estilo palito. Olhar para ela me causou estranheza. Ótimo. Uber de figuras exóticas!
A mulher se acomoda e sigo o roteiro, rumo ao endereço, enquanto enceto uma conversinha.
-Bom dia. O Sol está fervendo hoje, não? Recebo um leve sorriso.
-Quer bombons? Água?
-Não, obrigada.
Poxa! Essa não está em um dia bom. O azulzinho munido com rádio toca CD’s, indago se a minha passageira gosta da música de Alcione e se quer ouvir. Não, não gosto, obrigada.
Resolvi ficar calada e sigo com meus pensamentos sobre os diferentes. Em dado momento percebo soluços e, quando olho pelo retrovisor a mulher está em prantos.
Cai a máscara
O que houve? Posso ajudar? Essa mania de bancária que fica próximo ao caixa eletrônico ainda acaba comigo.
O choro aumenta.
-Meu pai...meu pai....
-Morreu?
Entre soluços, bochechas manchadas do preto a escorrer com as lágrimas e batom vermelho borrado, vejo e reconheço o quanto de diferente é aquela figura.
Nesse momento a amiga falante do aplicativo diz: Seu destino está à esquerda e, por sobre a voz do aplicativo, escuto a resposta, em tom alto e rouco, vinda do banco de trás:
-Ele me emparedou! *
Olho para a esquerda, Cemitério de Santo Amaro; volto ao retrovisor e não vejo ninguém. Mãos geladas, trêmulas e suja de medo, eu e o azulzinho disparamos dali.
Uber...nunca mais!
*Inspirado na “A emparedada da Rua Nova” de Carneiro Vilela.