
É Findi – Cultura e Lazer – A médica e cronista Valéria Barbalho lembra a partida da sua amiga Nelly de Carvalho focando um texto antigo sobre seu pai
05/07/2024 -
Estava viajando quando soube que minha amiga, Nelly de Carvalho, se encantou. Não pude ir ao enterro nem para a missa de sétimo dia, uma pena. Conheci Nelly e família numa viagem com os Amigos do Porto há mais de vinte anos e tive a sorte de ser acolhida pelos Carvalho como se fosse da família. Nas várias viagens que fizemos juntas, muitos pensavam que eu era filha dela. Quando comecei a escrever meus textos e publicá-los no Diário de Pernambuco e no Jornal Vanguarda, ela vibrou e sempre fez lindos comentários sobre eles. Um dos artigos que ela mais gostou foi escrito há uns 15 anos, lembrando do meu pai. Republico hoje, no Findi, em homenagem à minha querida amiga e "fêssora" (era assim que eu a chamava quando recorria a ela para tirar alguma dúvida de português dos meus textos). Saudades!

A Partida
Quando assisti ao excelente vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009, “A Partida”, fiquei emocionada durante toda a sessão me lembrando do meu pai. Antes, o filme que mais me fazia pensar nele era Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Mas, agora, esta película japonesa empatou com a obra prima da sétima arte italiana, também vencedora do mesmo Oscar, em 1988. Certas horas, parecia que eu estava vendo Nelson Barbalho na tela.
Diferenças
Não que, nascido na Capital do Agreste, ele tivesse olhos puxados feito aqueles artistas da Terra do Sol Nascente, nem os gestos suaves dos praticantes de Tai chi Chuan, e sim, os trejeitos dos bons contadores de causos. Meu pai também não comia peixe cru e bolinhos de arroz usando hashi, ele só gostava do arroz bem soltinho, grossas postas de cavala bem fritas no azeite e usava talheres. Não falava japonês, e sim, o autêntico nordestinês. Mesmo assim, esse filme e?, para mim, a cara dele. Tudo por conta da sua mensagem sobre a morte e o morrer, que é igual ao pensamento que ele tinha sobre esse tema e que deixou expresso em sua obra. São tantas as coincidências entre as citações do filme e as dele, que parece até que o senhor Yojiro Takita, o diretor, andou lendo Trem da Saudade, Vasto Mundo ou Baú de Sovina.
Brincadeiras à parte, desde o título, A Partida, significando a morte, já me fez lembrar de quando ele falava sobre o assunto: partiu para a terra dos pés juntos; partiu para a viagem sem volta; arribou para sempre. Ele conhecia tantas dessas expressões, usadas pelos nossos matutos referindo-se ao fim de tudo, que registrou em seu inédito "Dicionário de Nordestinidades" mais de 80 delas. Escreveu, inclusive, a letra de um baião, não gravado, que, apesar do tema, ficou bem engraçado por conta das rimas com termos tão criativos.
Lembranças
No filme, o personagem principal, em sua pequena cidade, é discriminado por trabalhar numa agência funerária, lidando diretamente com os mortos. Meu pai, em sua terrinha, foi considerado excêntrico por frequentar cemitérios, conversar com coveiros e anotar os nomes e as datas gravadas nas lápides, fazendo pesquisas para seus livros. Outros o acharam mórbido, quando, em Caruaru de Vila à Cidade, narrando a chegada do Sino da Igreja da Conceição, em 1856, abre os parênteses: “seu toque, anunciando o meio dia ou a hora da Ave Maria, é inconfundível e comove até as pedras do Monte. Bimbalha, meu sininho, bimbalha! És a sentinela indormida do meu Caruaru querido, em cuja mãe-terra hei de repousar eternamente, se o bom Deus o permitir, na esperança de que o meu enterro atravesse a minha velha Rua da Frente, onde me criei, e de que estejas a lastimar, bimbalhando a desencarnação de mais um caruaruense (...) Bimbalha, meu sininho, bimbalha!”.
Glosa da morte
Num diálogo do filme, discute-se valores, incertezas, o amanha?. Assuntos semelhantes ao mote transcrito no santinho da missa de sétimo dia de Seu Nelson: “Certo no mundo é a morte / No mais é tudo ilusão”. Glosado pelo dentista e poeta, Artur Tabosa: “Nelson teve muita sorte / Neste mote tão feliz / Concordo quando ele diz / Certo no mundo é a morte / Um mote assim, deste porte / Vem mesmo do coração, / É de muita inspiração. / Parabéns, meu caro amigo / Com você, eu também digo:/ No mais é tudo ilusão”.
O reencontro com os amigos
Noutra cena, um homem revela que não se despede dos mortos com adeus, diz até logo, pois acredita que ainda vai reencontrá-los. Com esta mesma ideia, meu pai escreveu vários artigos em sua coluna do jornal Vanguarda: “1982 foi um ano duro da gota em relação a certos amigos meus que partiram! (...) Foi-se também Pissica, o maior artista da fotografia, em Caruaru, no século XX. (...) No dia em que eu bater a bota, irei falar com São Pedro, para lhe pedir a oportunidade de rever Pissica, que deve estar no Céu, talvez até se divertindo e batendo fotografias das 11 mil virgens, fazendo de conta de que ainda fotografa os brotinhos da sociedade de Caruaru. Até lá, meu querido e saudoso amigo!”
Recado para Sinval
Ou este: “Recado para meu querido Major Sinval – Céu. Ainda continuo na terra não sabendo quando darei baixa neste vale de lágrimas. Não deve estar muito longe, pois já estou com sessenta e cinco no costado. É danado, mas, meu caro Major, que se pode fazer? É baixar a crista e tocar o bonde pra frente. Viver é amar e sofrer. (...) Quando eu queimar o fuzi, espero reencontrá-lo na Santa Paz do Senhor, rodeado por José Carlos Florêncio, Altair Porto, Artur de Castro, Zé Léo, o grande Josué de Castro e demais amigos sinceros que a gente mantinha aqui, no País de Caruaru, nos velhos e saudosos tempos que os anos não trazem mais (...). O próximo mês será abril, seu mês, e estarei bebemorando o seu niver, que seria o centenário se vosmicê ainda estivesse pruqui. Mode não perder o meu costume, já bolei um mote para o evento: Eis Sinval Centenário / Desta feita, lá no Céu! Quem vai glosá-lo? Sei lá! (...) Parabéns para você, nesta data querida. Inté os novelos! Do velho amigo, Nelson”.
Emoção no retorno a Caruaru
Solucei, quando, no filme, alguém diz acreditar que após a nossa partida inicia-se uma nova vida. Lembrei, imediatamente, do seu mote, que li na missa do traslado dos seus restos mortais de Recife para Caruaru, em dezembro de 2007, numa bela e comovente cerimônia realizada na Igreja da Conceição, com o sino bimbalhando:” no dia da minha morte, é que começo a viver” Glosado, pelo genial Major: O meu espírito forte / Vai reviver no futuro / Saindo do lodo impuro / No dia da minha morte. / Quando tiver essa sorte / Será meu alvorecer / Terminará meu sofrer / Na estreita campa funérea / Deixando a podre matéria / É que começo a viver.”
Saudade imensa
Agora, plagiando o meu pai, que partiu há 30 outubros:” vou ficando por aqui, pois a saudade é imensa; e com saudade no peito sinto vontade de chorar”.
