
Confederação do Equador, 200 anos. Os militares na fuga de Frei Caneca, artigo de Josemir Camilo de Melo*
07/09/2024 -
Quando Frei Caneca, fugindo dos bombardeios do Recife, sai de Olinda entre 12 e 16 de setembro de 1824, segue com apenas mais dois amigos, embora pelo meio do caminho, outros vão se juntando, na fuga, como os militares José Antônio Ferreira, José Matias e José Gomes do Rego Cazumbá. Estes logo se separam, por desconfiança desses paisanos. Isto faz parte da narrativa inicial do Itinerário de Caneca. O frade e os amigos também tomam distância dos militares, ao se dirigirem ao engenho Caraú, de João Nepomuceno Carneiro da Cunha e, em seguida, chegam a Goiana.
Este artigo tem como início uma divagação de quando redigia “1821, A “Revolução Liberal” em Goiana e a queda do General Luiz do Rego” (CEPE, 2022). Perguntava-me: por que frei Caneca não aderiu ao movimento de Goiana?
Nota de rodapé
A referência que Frei Caneca faz sobre a Junta de Goiana, daquele movimento liberal, é só um detalhe em nota de rodapé sobre Luiz do Rego Barreto: “Antes disto, porém, sua autoridade já vinha sendo contestada por um movimento de oposição que, em agosto de 1821, elegera um governo paralelo, a chamada Junta de Goiana, presidida por Francisco de Paula Gomes dos Santos. Em outra passagem, no seu Typhis Pernambucano, de 8 de janeiro de 1824, quando fala da queda de Gervásio Pires, diz que o clima político em Pernambuco chegou “às bordas do abismo” e arremata que “Goiana arvorou a bandeira da revolta, e esta ia ser geral” (2001, p.325). Mas ele mesmo, em pessoa, não vestiu, em 1821, o jaleco de guerrilheiro de 1817, junto aos goianistas, como vestirá em 1824, mesmo sem arma, que não a pena. Falo disto na conclusão.

Divisões na fuga
Quando da fuga do Recife, frente aos ataques das tropas imperiais, em setembro de 1824, a divisão era grande, pois os “carvalhistas” fugiam, de paisano a clérigos e militares das três ordens, exército, ordenanças e milícias, além e até da inovação do presidente Manoel de Carvalho, as companhias de guerrilhas. Quem não era conhecido de perto, era melhor se precaver, pois nada identificava grupos ou tropas carvalhistas, pois nem a bandeira da Confederação foi usada, rejeitada até pelo comandante do Brum, major Veiga Pessoa que disse, pessoalmente, ao presidente, que em sua fortaleza, aquela bandeira não seria fincada. Mais adiante, na fuga, os carvalhistas ou liberais, como queiram, passarão a usar também a bandeira imperial, o que dará mais confusão e alguma defesa. Este major, militar de carreira, é um dos poucos militares a receber o respeito do frade polemista, durante a campanha pelos sertões de quatro províncias.
Calhambolas
Sem contar com a insistente presença dos “calhambolas”, porque quase não há página de Caneca que ele não incrimine grupos com este apelido, principalmente, em duas ocasiões em que lhe roubaram cavalos e peças, deixando-o com a roupa civil do corpo.
Este termo calhambola é de difícil precisão, pois os grupos de militares denominavam qualquer ajuntamento de paisano pelo mato, ou pelo eito, de calhambola. Principalmente se fosse da gente contrária. Basicamente, o termo veio de quilombolas, dos grupos ao norte do Recife e das matas do Catucá e calhambola era chamado qualquer grupo que não fosse, naqueles momentos de guerra, de organização militar, de qualquer que, de brancos, mestiços ou negros.
Rumo ao Ceará
Caneca antes de chegar a Goiana segue com pouca gente civil, que ele descreve que havia até um soldado mudo, mas conhecidos, ao que parece. Com ele, ia o jornalista português, 'asilado' no Recife, João Soares Lisboa, já que tendo sido condenado a degredo e mesmo sendo perdoado pelo Imperador, fugira do Rio e passara a se esconder no Recife, à espera de embarcar. Caneca e Lisboa já se frequentavam como secretários ad hoc o palácio de Manoel de Carvalho. É este pequeno grupo que procura fugir com todos os carvalhistas para o oeste em busca dos republicanos do Ceará.

Mundo Real
Mas o frade escritor manterá o desconfiômetro ligado.
Em seu Itinerário, há desconfianças de tropas, de lideranças, e críticas a comandos falhos e, causticamente, expõe situações extremas ou até hilárias, como a de um subcomandante que dá ordens para os soldados tomarem uma posição e estes, em protesto se deitam. Narra o correspondente de guerra, Caneca, que foi preciso o major Agostinho (o famoso do conflito com Mundurucu, durante os ataques que este fazia aos comerciantes do Recife), apontar o canhão sobre esta esquadra para eles se levantarem e assumirem o posto. Como haver mão forte (o que Caneca vai cobrar de Veiga Pessoa, que é o único militar que ele elogia) num agrupamento que chegou a três mil pessoas, famílias inclusive?
A própria tropa comandada, pouco antes, pelo comandante das armas carvalhista, José de Barros Falcão de Lacerda já demonstrava este caos de liderança, nos combates às tropas imperiais dentro (do bairro) da Boa Vista, na Soledade, quando a maior parte da tropa desobedeceu ao comandante e partiu para enfrentar os imperiais de Lima e Silva. Derrota fragorosa e fuga para Olinda.
Desavenças
Caneca não errou em sua primeira descrição, quando viu as tropas do comandante Manoel Ignacio Bezerra de Mello, em Goiana e que ali estavam, tanto para ajudar o presidente temporário da Paraíba, Félix Antônio Ferreira de Albuquerque, como para ir em socorro aos carvalhistas do Recife. Naquele momento, não havendo acordo dos chefes da revolução sobre a direção que deviam tomar na fuga, parte das forças que obedeciam ao partido de Manoel de Carvalho acompanhou o major paraibano, José Maria Ildefonso da Veiga Pessoa para Poço Comprido; outra parte seguiu com o tenente-coronel Manoel Ignacio Bezerra de Melo para Nazaré, onde foi abandonada por este chefe, que se retirou para o seu engenho Tamataúpe (CANECA, 2001, p.168).
A sorte, ali, dos liberais foi a chegada do “goianista” (da ex Junta de Goiana) José Victoriano Delgado Borba Cavalcante de Albuquerque que, imediatamente, assumiu o comando das forças pernambucanas abandonadas por Manoel Ignacio, e sendo eleito, segundo Pereira da Costa, governador das armas (só faltou dizer dos confederados de Pernambuco; Vol. IX, p.73). Porque, na verdade, a ciumeira de comandos estava em alta, principalmente quando à tropa pernambucana se juntou à paraibana com seu chefe, Félix Antônio, que já tinha temperado a espada na batalha do Riacho das Pedras, em Itabaiana, em maio daquele ano, com uma tropa de 1.500 homens, quando perdeu 23 e matou 90 das forças imperiais. Tinha cacife, pois sua aventura foi registrada pelo jornalista de plantão, Caneca, que publicou matéria dez dias após se dar este conflito na Paraíba.

Mais desavenças
Um fato ilustrativo deste conflito foi a briga de um soldado da tropa da Paraíba com outro da de Pernambuco; aquele questionava os vivas a Manoel de Carvalho, e acabaram disparando suas armas; um morreu quase na hora e o outro, dias depois (CANECA, p.578).
Ora, se havia ali, alguém que acompanhava as tropas por necessidade vital, mas que as olhava com um olhar transverso, era Caneca. Nas Cartas de Pítia a Damão (a IX), ele expõe o que acha das milícias ou, porque, na prática, manteve-se separado, preferindo atuar como secretário na campanha dos confederados e sempre analisando criticamente aquelas tropas. Isto talvez explique por que não se filiou à luta liberal e constitucionalista dos goianistas.
Vejamos seu pensamento sobre estes militares (de milícias; não obrigatoriamente inclui as do exército, “tropas de 1ª linha”) que formam uma “classe” (em si?). O frade ilustrado (acho que) é o primeiro teórico brasileiro a pensar a categoria, com um rápido estudo sociológico sobre as milícias. Sobre o corpo de milícia, diz o jornalista revolucionário: “o fim a que se propõe a milícia é outro muito distante dessas coisas: não lhe competem os negócios políticos” (2001, p. 282).
Conceitos
Em seguida, Caneca passa a conceituar tropa:
A tropa, ou se considera como tal, ou não; no segundo caso, considerada como uns poucos de membros da sociedade, e arranjados pelos três estados da nação clero, nobreza e povo, a oficialidade faz parte da nobreza, e os que não são oficiais se arranjam no povo, e todos são cidadãos; de união com os outros competem-lhes os conhecimentos e decisão dos negócios civis e políticos; mas quando no primeiro caso forma a classe militar, são empregados da pátria, por ela assalariados para sustentar a tranquilidade interna, coadjuvando as autoridades na execução das leis, e a repulsar o inimigo externo, que ataca a liberdade da cidade, a sua propriedade, e ameaça a dissolução e a morte; e portanto nenhuma ingerência têm nos negócios civis e políticos. A ciência que lhes compete é a da arte militares (...).
E arremata: Infeliz a pátria em que o soldado é filósofo!” (Ibidem).
*Josemir Camilo de Melo é historiador.

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