Especial — Confederação do Equador: A Angústia de Frei Caneca numa Goiana deserta
14/09/2024 -
Por Josemir Camilo de Melo*
Há 200 anos, a vila de Goiana vivenciou uma cena inédita e angustiante. Ninguém saberia disto se não houvesse um relato escrito (CANECA, 2001, p.573-575). Frei Caneca e alguns confederados, fugindo dos ataques da tropa imperial, que bombardeava com canhoneios a partir da frota no porto, chegou a Goiana, depois de atravessar de Olinda a Igaraçu. Vinha camuflado, se escondendo pelo mato com três ou quatro companheiros paisanos e alguns soldados. Chegou tarde da noite e a vila dormia no seu remanso ainda colonial, pois não havia nenhum sinal físico da Independência no arruado urbano. Apenas o novo era a igreja da Conceição, consagrada por volta do começo daquele século. Por onde teria vindo o frade, como atravessara o Tracunhaém, principalmente à noite? Falta ainda um mapa físico e mental de Goiana destes dias. Vamos ao que o frade relatou.
Deserta
“Chegamos a esta vila (Goiana, em 18 de setembro de 1824) à meia-noite, e não foi pequeno o nosso espanto, quando sem esperarmos a achamos deserta inteiramente. O escuro da noite e o medonho silêncio em que estava sepultada a vila, os uivos dos cães, tudo cooperou para nos encher de terror, e nos julgarmos nos maiores perigos. Corremos várias ruas em busca das pessoas do nosso conhecimento, mas tudo foi baldado; porque a ninguém achamos”.
Duas casas
“Nesta circunstância deparamos com duas casas, em que por estarem com luz acesa nos falaram; mas foi para maior embaraço nosso. Em uma, um soldado cheio de maior terror por ver-nos, e talvez supor-nos inimigos, balbuciava, e nada dizia que fosse coerente; e ainda assim nos informou que toda a tropa já se havia retirado pela estrada da Conceição. Mas outro, que em outra rua nos falou, traiu-nos dizendo-nos que a tropa tomara a estrada de Goiana Grande: era o mesmo que entregar-nos aos ceroulas [provavelmente, ironia popular que queria dizer gente de Milícias e Ordenanças, que lutavam sem farda] de João Baptista Rego, que já haviam tomado o ponto de Pitimbu, e era natural estarem naquelas fronteiras”.
Topografia ignorada
“Os nossos companheiros, que ignoravam a topografia da vila e não sabiam e nem podiam conhecer o laço que nos armava o segundo informante, desconfiados do modo trepidante do primeiro, fiaram-se na segurança com que falou o segundo; e assim assentaram que tomássemos o caminho de Goiana Grande (devia ser a estrada para a Paraíba). Ponderamos-lhes o que sabíamos, dirigindo-nos a mostrar-lhes que jamais podia a força de Goiana seguir aquele destino; mas foi em vão: teimaram os nossos amigos no seu entendimento, e nós por contemporizar seguimo-los; e, ao passar pela frente do Convento do Carmo, nos dirigimos a ele, para que lá tomássemos informação do estado das coisas; mas tudo foi sem fruto”.
Ilusão
“O convento estava aberto e às escuras, ainda assim pelo tino, que nos fazia lembrar dos seus arranjos, por termos por anos habitado aquela casa, nos arriscamos a entrar e subir até o seu antecoro; e por mais que gritamos a chamar quem lá estivesse, ninguém nos respondeu”.
Caráter contemporizador
“Aqui os nossos amigos, que haviam ficado fora, nos chamaram e fizeram-nos acompanhá-los pra Goiana Grande. Sempre tivemos um caráter de contemporizador com os nossos amigos; e, fazendo reflexão sobre os trabalhos porque havíamos passado em nossos dias, conhecemos que tudo devíamos a conselhos alheios; e por este motivo, depois de haverem chegado aos lameirões de Goiana Grande, tomamos a resolução de não nos sacrificar a conselhos sem fundamento algum e inteiramente opostos à nossa salvação. Por isso, fazendo notar aos amigos que eles por não saberem as direções das estradas se iludiram com a aparente segurança do segundo soldado, e que até aquele momento mesmo nós sempre havíamos padecido por sermos escravos da vontade dos nossos amigos, declaramos que fazíamos ponto ali, e começávamos a usar do nosso entendimento; pelo que os não acompanhávamos”.
Retaguarda da força
“Esta nossa resolução salvou a todos, porque eles, dando peso ao nosso juízo, voltaram conosco pela estrada da Soledade; e depois de havermos andado o resto da noite, fomos encontrar com a retaguarda da força duas léguas acima da vila. Aqui já cansados dos trabalhos antecedentes e fatigados do espírito, descansamos em uma casa muito velha; pelo que havia dentro supusemos ser de ladrões; por este fundamento não houve maneira de conciliarmos sono, e passamos no campo, ora assentados, ora deitados, ora passeando até o romper da aurora. Raiando esta, nos pusemos em marcha para chegarmos a Goianinha, onde havia dormido o presidente temporário da Paraíba. A poucos passos fomos encontrando por toda a estrada muitas pessoas do nosso conhecimento, entre as quais foi o tenente-coronel Manuel Inácio de Melo, que no dia antecedente fora aclamado em Goiana comandante-geral daquela força. Da prática que tivemos com ele, não fizemos bom conceito daquela força, e não julgamos segurança alguma no meio dela, por nos ser descrita com uma multidão confusa, sem ordem, sem subordinação e inteiramente anárquica”.
Dia seguinte
“Chegamos afinal a Goianinha, e ali achamos o grosso da divisão e um povo numeroso com algumas famílias honestas; cumprimentamos o presidente (temporário da Paraíba, Felix Antônio Ferreira de Albuquerque, aclamado por cinco das nove vilas paraibanas): desde logo fomos agregados à sua família, e tomamos quartel na mesma morada”. Caneca termina o relato desta noite de medo, narrando o dia seguinte, quando chegou à povoação de Goianinha “que é uma povoação não pequena, e representa ter algum comércio dos gêneros de lavoura. Tem uma igreja pequena; ela e as casas da povoação são de má ou de nenhuma arquitetura; à exceção de mui poucas, as outras são de palhas”.
Presos políticos
Ainda registraria o frade jornalista a sua passagem de volta, na caravana dos presos políticos da Confederação do Equador vindos do sertão do Ceará, em 15 de dezembro de 1824. A guarnição evitou a vila, pernoitando no engenho Bujari. Ia preso, para ser submetido a uma corte marcial, pois seu destino já estava traçado numa portaria imperial de julho daquele ano.
Itinerário
Frei Caneca relatou este momento em seu Itinerário: “(...) fomos chegar a Goiana pelas onze horas da manhã, onde querendo o major Pastorinha (da Paraíba) ficar, resolveu-se, afinal a irmos aquartelar no engenho de Bujari, a meia légua da vila, cuja propriedade pertence ao padre João Álvares de Souza, que nos acolheu muito bem. Aqui fomos visitados por muitos homens liberais de Goiana, que de propósito nos foram abraçar, e oferecer-nos os seus serviços, e nos presentearam com bom peixe e para cearmos, vinho, queijos, frutas e doces. Aí pernoitamos e, sobre a madrugada querendo-nos aprontar para seguirmos a viagem, demos por falta de alguns companheiros nossos. Ao depois de alguma diligência, não se podendo descobrir os fugitivos, saímos ao amanhecer do dia 16 (...)” (CANECA, 2001, p.602/3). Apesar de sua contundente defesa, seu destino já estava traçado pelo português D. Pedro I. Foi fuzilado, no Recife, em 13 de janeiro de 1825.
*Josemir Camilo de Melo é historiador
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