
Artigo - O Cavalo de Troia, quem diria, ainda surte efeito em plena era digital
24/09/2024 -
*Ricardo Rodrigues
O episódio mais parecia o enredo de um filme de James Bond, com suas mirabolantes operações de espionagem. Mas jamais passou pela cabeça do criador do 007, Ian Fleming, conceber uma ação de tamanha ousadia. Coube ao Mossad, o serviço secreto israelense, protagonizar uma das mais complexas e arrojadas operações de inteligência de todos os tempos, que certamente entrará para os anais da história da espionagem.
Refiro-me à operação dissimulada de sabotagem que implantou explosivos nos “pagers”, aparelhos de comunicação, e “walkie-talkies” dos integrantes do Hezbolah, para detoná-los na semana passada. As explosões em série mataram pelo menos 37 pessoas e deixaram mais de 3 mil feridos, a maioria, civis. As imagens viralizadas das explosões nas ruas do Líbano chocaram o mundo.

Volta por cima
A complexidade e o arrojo da ação empreendida pelo serviço de inteligência israelense deixariam até os produtores da franquia de filmes “Missão Impossível” de queixo caído. Simplesmente inimaginável que pudesse ser executada com sucesso. Mas foi. E, com o êxito da operação, a inteligência israelense conseguiu resgatar a reputação que ostentava antes da invasão do Hamas a Israel em 7 de outubro. Não haver previsto e barrado a ação do Hamas naquela ocasião foi considerado por analistas em todo o mundo como o maior fracasso dos serviços de inteligência de Israel, e dos Estados Unidos. Com os “pagers” assassinos, os serviços de espionagem israelenses davam a volta por cima.
A Oportunidade
A preferência da liderança do Hezbolah por “pagers” e “walkie-talkies”, ao invés de celulares, fazia todo sentido. Apesar de tecnologicamente ultrapassados, esses equipamentos de comunicação não permitem o rastreamento tão comum aos celulares. O problema é que esses equipamentos já não são tão fáceis de encontrar no mercado. O processo de se encomendar sua produção no estrangeiro terminou criando a oportunidade para que o serviço de inteligência de Israel pudesse colocar em andamento uma inédita ação de sabotagem.
A Execução
A princípio, pensava-se que a empresa detentora da marca Gold Apollo, de Taiwan, estaria por trás da colocação dos explosivos nos equipamentos. As autoridades de Taiwan apressaram-se para informar que os equipamentos não haviam sido produzidos no país. A Gold Apollo havia licenciado o uso de sua marca para uma empresa na Hungria, a BAC Consultoria, que seria, então, a responsável pela fabricação e entrega dos equipamentos ao Hezbolah, no Líbano.
Depois de muito fuçar lá na Hungria, a imprensa descobre que a empresa só existe no papel e que seu endereço oficial é um pequeno prédio compartilhado por várias empresas de pequeníssimo porte. Sua diretora, Cristiana Bársony-Arcidiacono, simplesmente desapareceu do mapa desde que os pagers começaram a explodir. Segundo a Rede de Televisão CBS, dos Estados Unidos, ela está escondida, sob proteção do serviço secreto húngaro. A exemplo do governo de Taiwan, as autoridades húngaras declararam que os pagers nunca estiveram na Hungria e que a BAC só agiu como intermediária.
Aparentemente o que aconteceu foi que o serviço de inteligência israelense instalou uma fábrica em algum lugar ainda desconhecido somente para produzir esses equipamentos já com seus dispositivos para explosão. Ao mesmo tempo, estabeleceu a BAC como uma empresa de fachada para negociar a venda e a entrega dos “pagers” e “walkie-talkies”.
Cavalo de Troia
Ludibriando a liderança do Hezbolah, os “pagers” assassinos funcionaram como uma espécie de cavalo de troia. Ao introduzir no conflito um elemento surpresa, totalmente inesperado, as explosões dos aparelhos atordoaram de tal maneira as lideranças políticas e militares do Hezbolah, que eles foram levados a se descuidar da segurança e dos esforços de contra-espionagem.
Tudo leva a crer que foram esses descuidos que permitiram à inteligência israelense identificar, com precisão, o local onde o alto comando militar do grupo se reuniria. Assim, às detonações dos aparelhos seguiram-se, na sexta-feira, um bombardeio aéreo dirigido a um edifício de apartamentos nos subúrbios de Beirute. Nesse prédio, estavam Ibrahim Aqil, principal comandante das forças militares do Hezbolah, além de outros integrantes de sua unidade de elite. O bombardeio israelense destruiu o edifício, matando 14 pessoas, no total, e ferindo outras 66, incluindo crianças.

Por que agora?
Uma das hipóteses que mais circulou entre analistas na semana passada foi que, apreensivos com a possibilidade da descoberta do plano pelo Hezbolah, os israelenses decidiram que não deveriam esperar mais para colocá-lo em prática. Não penso assim. Na minha opinião, o “timing” para o acionamento dos pagers assassinos está ligado ao processo eleitoral nos Estados Unidos. Israel conta atualmente com o apoio do governo Biden mas não tem certeza da continuidade desse suporte após as eleições. Assim, a ideia foi avançar o máximo possível agora para não ficar na rua da amargura depois do pleito.
Saliente-se que, embora, retoricamente, os Estados Unidos defendam uma solução diplomática para a região, a primeira reação do governo à escalada do conflito foi o envio de mais tropas. Isso, sem contar que já se encontram no Golfo Pérsico 2 porta-aviões norte-americanos prontos para entrar em ação.

Escalada do conflito
Como um Cavalo de Tróia, os pagers assassinos não foram concebidos como um fim em si mesmo. Eles constituíram uma primeira etapa de uma estratégia maior com vistas a escalar o esforço de guerra contra o Hezbolah no Sul do Líbano.
E a escalada do conflito já está em pleno andamento. Ontem, por exemplo, os bombardeios aéreos israelenses no Líbano mataram quase 500 pessoas. Trata-se do maior número de mortes registrado no país desde o fim da guerra civil em 1990. Além disso, os ataques israelenses feriram quase 2 mil pessoas e levou dezenas de milhares de libaneses a abandonarem suas casas em busca de segurança.
Para Benjamin Netanyahu, o objetivo dos bombardeios é “alterar o equilíbrio de poder” na região. “E é exatamente isso que estamos fazendo”. As forças militares de Israel já bombardearam 1.600 alvos do Hezbolah e vão continuar com os ataques aéreos.
A escalada do conflito interessa a Israel, mas não é nada boa para o mundo. Não é à toa que preocupa a ONU. Gutierrez sabe perfeitamente que o aumento da tensão entre Israel e Hezbolah representa uma ameaça não apenas à estabilidade da região. Representa uma ameaça à paz mundial.
*Ricardo Rodrigues é jornalista e cientista político. Escreve em O Poder sobre política internacional às terças-feiras.

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