
É Findi – Cultura e Lazer – Café com suita, conto, de AJ Fontes*
01/11/2024 -
No meio de uma modorrenta tarde de verão, entram sob o neon escondido pela fuligem dos automóveis.
Na parede lateral, o espelho duplica os mármores das mesas deixando à mostra arcos de madeira. Escolhem uma distante do balcão, onde o garçom arruma a lapela do paletó branco, alinha a gravata borboleta e observa.
O homem afasta a cadeira, ela se senta e os olhos castanhos cintilam ao encontrar os dela quase fechados ao esboçar um sorriso. Ela ainda sorri com esses olhos de anjo. Sempre gostou de ternos creme e gravatas escuras. O negro dos cabelos ainda brilha, mas o corte mudou.
Levanta o braço e estala os dedos mostrando a reluzente esmeralda. O garçom arruma a toalha branca no braço esquerdo e apanha a bandeja prateada.
Ela recolhe o sorriso e baixa a cabeça.
- Pois não, senhor?
- Um uísque com gelo e...
- Uma soda limonada.
Volta ao balcão.
Puxa, por que essa tristeza repentina? Com as mãos enluvadas, mexendo na pequena bolsa rosa no colo, sobre o vestido vermelho com o babado de rendas branca, levanta a cabeça e mira as mãos dele. A pedra verde cintila, parabéns doutor Carlos Henrique, mas não esconde o brilho dourado da aliança. Ele cobre com a outra mão e desliza ambas para as coxas.
Toma um gole, acende um cigarro. Está mais bonita. Não vou esquecer o dia que nos conhecemos em meio à algazarra dos colegas na saída do Colégio Nóbrega. Esbarrei na menina com a farda do Pinto Júnior, nossas pastas abriram, cadernos, livros se espalharam na calçada enquanto tentávamos aliviar a dor da pancada esfregando a mão na testa. Abri os olhos e vi a menina mais linda do mundo. Nos baixamos sem largar os olhos um do outro, tateando em busca das coisas. Os colegas pararam a risadagem e ajudaram.
Não parei de pensar em você nesses nove anos. Encontra uma interrogação no rosto dela. Procuro uma maneira de continuarmos nossa história. Encontrou?
Ele se mexeu no acento, girou o copo na mesa, puxou a fumaça do cigarro, pigarreou. Os olhos saltaram da mesa para os ladrilhos do piso, para os olhos dela. Respirou fundo.
Quero você comigo para o resto da vida. Não me importa a situação. Mostra o anelar esquerdo. Foi imposição de minha família, não posso me indispor com eles. Por quê? O dinheiro comanda sua vida? Quais seus sentimentos... De verdade? Não é assim. Eu amo você e... Então mostre, esqueça a fortuna dos Fernandes de Azevedo Baptista. Vamos viver nossas vidas juntos. Não me importo se está casado. Você é médico e eu sou contadora.
Não... não, não. Posso te manter do jeito que você merece. Terá tudo: boa casa, carro, viajaremos, dinheiro para compras... Não quero nada disso. Larga o cigarro no cinzeiro, levanta as mãos em palma, olhos marejando, voz quase sumida. Só quero você!
Ele dá um gole e acompanha o gato que se esgueira entre os móveis e desaparece na porta do fundo do salão. O eco dos passos denuncia a aproximação do garçom, apoia a bandeja na mesa coloca duas pedras de gelo e a terceira dose no copo alto, substitui o cinzeiro. Mais uma soda, senhora? Recebe um não com um meneio de cabeça.
Minhas escolhas
Faremos nossa vida longe daqui Carlos Henrique. Não posso. Tenho compromissos. Eles impuseram todos esses compromissos. Não, eu aceitei. Helena, eu amo você, mas eles são meus pais. Entendo que não tenha esse sentimento. Afinal você perdeu os seus muito jovem. Não diga isso!
Ele deixa o copo à meio caminho da boca. Ouvi o suspiro da amada.
Desculpe. Não pretendia me alterar. Eu os amei e amo a memória deles. Não ter meus pais ao lado no meu desenvolvimento como mulher me ensinou a tomar conta da vida. Cheguei onde estou por esforço próprio. Claro, meu padrinho ajudou bastante. O pequeno apartamento, essas roupas, o alimento, até a pequena poupança, são frutos de meu trabalho. A buzina do carro passando na rua chama a atenção da moça. Desmancha as rugas da testa e relaxa o rosto rosado em volta da boca cujo carmim manchou o filtro do cigarro entre os dedos e os olhos de verde fugídio por traz do castanho claro fixados aos dele. Nada disso me fez esquecer você.
O motor do ventilador da geladeira ocupa o silêncio e a risada de um casal de passagem na calçada leva Helena ao escritório onde trabalha. Seu Antero é um bom chefe: capaz, respeitoso, reconhece meu trabalho. Até mais que o de dona Marta. Sinto pena dela. Sessenta e tantos ainda cuida da mãe depois de um dia organizando o trabalho de um pelotão de mulheres.
Aproxima, bandeja numa mão, a outra nas costas, curva levemente a cabeça.
- Dois cafezinhos.
- Açúcar?
- Suita.
- Pois não.
Os laços fluidos dos cigarros, deixam o casal perdido um do outro. Será que Sr. Antero conhece realmente a mulher, quero dizer ex? Aquele bilhete me mostrou que ela não entendeu o porquê de ele ter feito as malas e saído de casa. Ela procurou um amigo pra contar a falta que sentia da companhia do marido; a dificuldade de conversar. Ele mudara desde o casamento. Helena voltou à mesa com o cheiro do café fresco.
Cheiro ácido, quente, experimenta o sabor forte e devolve a xícara à mesa enquanto observa Carlos Henrique perdido nalgum lugar sem contar as gotas pingando na bebida.
Deus meu, será que essa é a melhor forma de fazer isso? Ela é o amor de minha vida, mas é certo deixar tudo que tenho?
Grande fumo ascende no centro da mesa. Com espanto nos rostos envoltos pela fumaça descobrem a distância um do outro. A vida faz isso com a gente.
Da minha vida, cuido eu
Findou o expediente da tarde e Sr. Antero permanece sentado no birô, frente a dezenas de outros no salão comprido do escritório.
Braços cruzados, cumprimenta os que saem. Toca meu braço. Posso falar com você? Aceno que sim com a cabeça e me convida a sentar ao seu lado. Outros passam. Podemos conversar em algum lugar longe do trabalho? Onde? Diga você? No Savoy.
No primeiro andar. Um cinzeiro e dois chopes na mesa mais afastada dos risos dos habituados nas mesas longas de homens. Um sorriso quase aparece nos lábios do Sr. Antero no meio da incerteza em manter o olhar na convidada, no piso sujo do dia ou nos vizinhos de mesa.
Acho que é de seu conhecimento que eu me separei de minha mulher. Esse assunto surgiu nas conversas da hora do almoço. Pois é. Faz dois, três meses. Eu admiro muito você. É inteligente... dinâmica. Aprecio sua beleza. Procura alguma reação e não encontra. Baixa a cabeça feito um cão farejando comida e encara os olhos verdes.
- Não estamos num momento de escolher e a vida exige algumas mudanças. Podemos fazer isso de maneira que tenhamos conforto, segurança no correr da vida. Continua observando o olhar sereno de Helena. Posso oferecer isso a você. Nem trabalhar você vai precisar. Vê outro cigarro ser acesso. Você quer casar comigo?
Helena amassa a brasa no cinzeiro, vagueia pelo vazio, suspira. Cruza os braços à frente da caneca, delineia os traços maduros do rosto do chefe.
- De fato preciso e vou mudar de vida. Aliás, creio que iniciei essa mudança. Casar não está nos meus planos.
Sr. Antero avança o corpo sobre a mesa.
- De que maneira, então?
Helena acende outro cigarro, sopra.
- Assumindo o seu lugar.
*AJ Fontes, contista e cronista, engenheiro aposentado, publicou o livro de contos: Mantas e Lençóis. Publica um conto sobre o amor.