Análise - A liberdade no mundo entrou em quarentena. Entenda como e por que, por Antonio Lavareda*
27/11/2024 -
No Ocidente, que é onde minha vista alcança, a questão da liberdade nesses tempos
remete sobretudo ao medo. Como o professor Sul-coreano-alemão, Chul Han, descreve,
“a liberdade não é possível onde reina o medo. Medo e liberdade se excluem
mutuamente”.
O medo aprisiona a sociedade
Contraposto ao espírito da esperança ,
sobretudo à esperança ativa, comprometida com movimentos de busca do progresso,
ele a deixa em permanente quarentena.
Por certo, isso não significa esquecer o fato de que há diversos países no hemisfério que
enfrentam essa questão na dimensão mais concreta, dura, primitiva - de histórica
privação de liberdades públicas. Países onde nunca houve instituições propriamente
democráticas, a exemplo entre outros de Zimbábue, Ruanda, Gabão ou Burundi. Outros
há em que elas existiram mas foram interrompidas por revoluções autodenominadas
democratizantes, mas que se corromperam em regimes autoritários como Cuba,
Venezuela e Nicarágua.
Em todos esses países
Na ausência quase absoluta da liberdade, o medo do sistema,
o temor aos tiranos, está incorporado permanentemente ao kit de sobrevivência mental
dos indivíduos na esfera pública.
Mas não é desse medo que cogito aqui. Tampouco se trata do “medo líquido” de que
fala Bauman, cujas raizes são as incertezas relacionadas aos múltiplos riscos da
“globalização negativa”. Sejam os desastres climáticos e ambientais, as crises
econômicas, as pandemias, ou o terror
Dirijo a lente
Para o sentimento que tem prosperado nesse primeiro quartil do século XXI, difundido regular e sistematicamente - com organização, disciplina e método- , pela extrema direita, em suas diferentes versões nacionais. Um medo “arquitetado”.
Assim, às velhas formas de supressão das liberdades vem se somar agora a estratégia
do iliberalismo, promovida pela ultra direita internacional. Nela, a democracia é corroída por dentro, conforme o modelo exitoso da Hungria, de Viktor Orbán.
O sucesso dessa estratégia se baseia na promoção desenfreada do medo.
O medo que assume caráter coletivo é polarizador. Magnifica as divisões dentro da
sociedade. Politiza e aprofunda diferenças que antes se viam pouco valorizadas, eram toleráveis e conciliáveis. Ele produz e dissemina uma sensação de instabilidade que
termina por se materializar efetivamente, estimulando descontentamento e protestos,
conflitos e até derrubadas de governos.
Esse medo redesenha o debate público
E leva os eleitores a abandonarem seus partidos e lideranças tradicionais, galvanizando o apoio
a outsiders, em geral líderes autoritários que lhes acenam com segurança e proteção. O medo justifica, por fim, as políticas repressivas, desde a aceitação da restrição de direitos até mesmo o aplauso à hipótese de governos totalitários, como resposta ao que Hanna Arendt já conceituara como “inimigos objetivos" geradores de suspeitas generalizadas e
discriminada, sobre os quais se determinava o “uso da mentira”, administrado primeiro pelo partido e depois pela máquina do Estado.
Nos tempos atuais, para promovê-lo e fazer adoecer a democracia representativa os
venenos são atualizados, bem como a posologia adotada. Envolve doses elevadas de
desinformação deliberada e disseminação maciça de fake news na internet.
O pior
É que não há antídotos cem porcento eficientes. Não há como evitá-los de todo.
A emergência das redes sociais tornou isso impossível. Mas é necessário coibí-los.
Limitá-los em alguma medida. Sobretudo pela regulação das plataformas, como fez a União Europeia. As deepfakes criadas por inteligência artificial e os milhões de usuários e bots, que distribuem informação apócrifa em redes criptografadas de ponta a ponta,
agravaram o problema. Elevando o desafio a um patamar bem superior ao que foi no passado o de controlar a propaganda política em jornais, rádios e TVs.
Ocorre que
Em países como Brasil e Estados Unidos, há uma enorme resistência à
regulação de plataformas e redes. A extrema direita paralisa essa agenda nos respectivos congressos. Afinal, é difundindo o medo, e a partir dele agredindo ora as minorias, ora o establishment, mesmo quando estão claramente associados aos
interesses das elites econômicas, é com essa fórmula que os novos populistas se valem dos algoritmos das redes para conquistar apoio eleitoral. A combinação dos interesses
econômicos das plataformas e da força da ultra direita nesses países torna muito difícil caminhar nessa direção.
A expectativa do mundo
Se volta nesses dias para tentar prever o que acontecerá na
principal potência, os Estados Unidos da América, a partir de 20 de janeiro do ano
próximo. Mas a rigor não é necessário qualquer exercício adivinhatório. Basta reler os discursos e rever a propaganda da campanha. Até o momento, temos um show de coerência. Os nomes anunciados para o novo gabinete, por mais bizarros que pareçam a muitos, são perfis totalmente congruentes com a retórica do então candidato.
Portanto, é mais que justificado o temor de um retrocesso significativo na agenda de combate ao aquecimento global, numa quadra em que se multiplicam os desastres climáticos; do anunciado distanciamento dos líderes europeus, agravado pelo maior
alinhamento com a Rússia; e o temor de uma redução substancial do apoio à OTAN, e
especialmente à Ucrânia, que será levada à paz de joelhos. Na agenda interna, haverá
deportações em massa de indocumentados; perseguição a funcionários que no
passado não foram complacentes com iniciativas ilegais; demissões em massa de servidores públicos, a pretexto de reduzir a burocracia; posturas negacionistas na
condução da saúde pública; e até mesmo a extinção do Departamento Federal de Educação. Tudo isso sob a direção e batuta ideológica da Direita-Tech representada
por Elon Musk e J.D. Vance.
Por que Trump volta à Casa Branca?
Porque que o medo já estava suficientemente
instalado na alma dos americanos ao tempo da votação.
A poucos dias da eleição, uma pesquisa do jornal New York Times, em conjunto com o Siena College, mostrava a vitória de Trump no voto nacional por um ponto percentual (Trump, 47%, Harris, 46%) . Como sabemos, o resultado não foi muito diferente: Trump teve no voto total 50%, e Harris 48.4%.Uma diferença de + 1.6.
Aquela pesquisa
Mostrou que 76% dos americanos acreditavam que a democracia no
país estava sob ameaça. Uma opinião disseminada em todos os níveis de renda e
escolaridade. Com presença simétrica nos dois contingentes eleitorais (com 77% entre os eleitores de Harris, e 76% entre os de Trump). Por seu lado, em outro levantamento, o
Instituto Gallup revelou que o medo dos imigrantes havia assumido grandes
proporções . Para um inédito percentual de 82% dos eleitores republicanos, a imigração
aparecia como questão super importante para ser levada em conta na eleição.
Os norte americanos
Foram às urnas sob dois signos combinados: o do medo generalizado de que sua democracia estivesse em perigo; e um segundo, potencializado
pelo primeiro, o da ansiedade específica movida sobretudo pelo descontentamento com o governo do dia, com 62% acreditando equivocadamente que a economia estava
piorando e 46% insatisfeitos com sua situação econômica contra apenas 25% de satisfeitos.
Perdeu o partido no poder. O que tem ocorrido com frequência no pós pandemia em
diversos outros países que enfrentaram dificuldades, especialmente no capítulo de
inflação e juros elevados. Como prescreve a “teoria da inteligência afetiva”, a ansiedade gerada na base eleitoral dos partidos incumbentes cria uma abertura que é usada para
encorajar a defecção de eleitores na quantidade suficiente para mudar a correlação de
forças em favor dos desafiantes.
Porém
Cabe enfatizar que, se a economia jogou mais uma vez um papel central no
voto, o descontentamento com ela ocorreu dessa vez agravado por um clima de medo,
propelido por fake news poderosas, pervasivas, mesmo quando desmentidas de forma contundente pelos fatos.
“Haitianos comendo gatos” e “votando em massa”; vídeos produzidos na Rússia
denunciando “operações irregulares do FBI”; “democratas apoiando o aborto até depois do nascimento”; Estados Unidos ocupado por “hordas de estrangeiros criminosos
importados pelo governo das masmorras do terceiro mundo”. Todas, notícias falsas.
Somente as postagens de Elon Musk com alegações falsas e vídeos adulterados
acumularam bilhões de visualizações segundo o Grok, concorrente do ChatGPT. Grok
que é do mesmo Elon Musk, que doou 200 milhões de dólares e fará parte do governo
Trump.
Concluindo
O certo é que a inflação aliou-se ao medo, e os americanos deram lugar - com o novo governo Trump majoritário na Câmara e no Senado, e respaldado pela
maioria conservadora nos Suprema Corte - a uma era de incerteza como poucas vimos
antes. Nesse momento, não é exagero afirmar, voltando à metáfora de Chul Han, que a
liberdade do mundo entrou em quarentena.
*Antonio Lavareda é cientista político e sociólogo, IPESPE/ UFPE. Presidente de Honra da ABRAPEL -
Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais.
(Palestra proferida na Conferência
Internacional “O Porto da Liberdade”. Promovida pelo Instituto Português de História e
Cultura Local. Porto. Portugal. 26/11/2024).
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