
A complicada situação da guerra na Síria, mesmo após a queda do regime de Assad, análise por Ricardo Rodrigues*
11/12/2024 -
Ninguém duvida de que as consequências dos 13 anos de conflito armado na Síria foram desastrosas. Milhares de presos políticos, centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados espalhados pelo mundo estão aí para comprovar esse fato. Há, pois, muito o que comemorar com a queda do regime tirânico de Bashar Al-Assad. Entretanto, a forma como os conflitos evoluíram ao longo de mais de uma década e como chegaram ao presente desfecho continuam a preocupar muita gente. E não é sem razão.
Guerra civil?
De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, uma guerra civil pode ser definida como “uma situação de violência envolvendo o confronto armado prolongado entre forças do governo e um ou mais grupos armados organizados, ou entre apenas tais grupos, dentro do território de um Estado”. Em seus primórdios, os conflitos na Síria se encaixavam perfeitamente nesta definição. Tudo tem início em 2011 com uma revolta popular contra o governo, inspirada pelo movimento da Primavera Árabe, na Tunísia e no Egito. Quando os protestos pacíficos foram contidos pelo governo com violência excessiva e massacres, o que começou como manifestações pacíficas transformaram-se em conflitos armados. Vários grupos armados passaram a combater o governo de Assad, entre os quais, o Exército Livre da Síria, o Estado Islâmico, as Forças Democráticas Sírias, e o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), responsável pela tomada de Allepo e de Damasco, na semana passada.
Entretanto, a história do conflito não se limitou à participação desses grupos armados. Se assim fosse, teríamos, de fato, uma guerra civil, na mais pura acepção do conceito. Acontece que o curso do conflito passou a ser determinado pela presença e engajamento de outros países. Rússia e Irã alistaram seu apoio ao governo de Assad, enquanto os grupos armados contrários a Assad receberam o apoio da Turquia, dos Estados Unidos, e da Arábia Saudita. Apoio aqui refere-se ao suporte de armas, treinamento, finanças, e, não raro, a bombardeios aéreos e pessoal militar em terra.
Tapando o sol com uma peneira
Ora, a participação, direta ou indireta, de potencias estrangeiras acabou transformando o conflito na Síria numa espécie de travesti de guerra civil. O que começou como uma verdadeira guerra civil, evoluiu para uma guerra híbrida, multifacetada, com a presença ostensiva de contingentes militares de outros países. Tome-se o exemplo dos Estados Unidos. A despeito de o Presidente Biden afirmar durante a campanha eleitoral que seu país não mantinha militares em quaisquer frentes de batalha no mundo, quase mil militares americanos servem na Síria, ocupando inclusive uma base militar em Al-Tanf, para apoiar os curdos que integram as Forças Democráticas Sírias. Ademais, mais de 800 bases militares estrangeiras estão espalhadas no território sírio, um número que expressa bem o grau de internacionalização do conflito. Dizer que se trata de uma guerra civil é querer tapar o sol com uma peneira.

Internacionalização do conflito
Cada um dos países que se fazem presentes na Síria está ali para defender seus interesses geopolíticos. A Turquia, por exemplo, deseja frear o crescimento dos curdos nas proximidades de sua fronteira, tomando para si territórios no norte da Síria. Outrossim, almeja também ampliar a projeção de sua influência geopolítica na região.
A Rússia entrou na guerra em 2015, motivada por interesses estratégicos no Oriente Médio. Suas instalações militares na Síria e o poder de fogo de seus bombardeios garantiram a sobrevivência do regime de Assad até recentemente. O conflito revelou-se um excelente campo de testes para armas recém produzidas por sua indústria bélica.
O Irã entrincheirou-se na Síria desde o início da guerra, enxergando a sobrevivência do regime de Assad como essencial para garantir seu prestígio como poder militar na região e melhorar suas condições para enfrentar Israel.
Por sua vez, Israel mergulhou de cabeça no conflito para encarar a ameaça representada pelo Irã e seus aliados, Hezbolah e Hamas. Os esforços israelenses na Síria sempre visaram reduzir o potencial de dano que o Irã poderia infligir no território israelense. Os israelenses sabiam que as linhas iranianas de suprimento de armas para o Hezbolah e o Hamas passavam pela Síria.
Assim como Israel, a Arábia Saudita também se contrapunha à influência iraniana na região. Armou e financiou rebeldes desde o início da guerra. Tendo se colocada contra Assad, agora preocupa-se em preservar a Síria como um estado árabe viável.
Por fim, os Estados Unidos estão envolvidos no conflito desde a presidência de Barack Obama, sempre apoiando forças contrárias ao regime de Assad. Ajudaram os rebeldes curdos a conquistar território e continuam a fazer bombardeios aéreos na região mesmo após a queda de Assad.
Caldeirão efervescente
Assim, a chamada guerra civil síria não passa de um grande caldeirão efervescente de potências e interesses geopolíticos se digladiando por influência e supremacia. O conflito assemelha-se mais a um laboratório de experiências bélicas, no qual potências internacionais e regionais testam armas e estratégias num campo de batalha real, porém de escala reduzida.
Saliente-se que esse laboratório não deixará de existir com a queda do regime de Assad. Talvez os grandes perdedores deste conflito se retirem do teatro da guerra, mas os vitoriosos certamente ali permanecerão.
Mais interessada em fortalecer sua posição na Guerra na Ucrânia, a Rússia deverá retirar seus militares da Síria. O Irã diminuirá sua presença, mas dificilmente recuará de seus objetivos relativos à região. O comportamento dos Estados Unidos dependerá da política do presidente-eleito com relação ao Oriente Médio.
Num laboratório de testes, as cobaias são quem menos se beneficiam. Nada indica que a Síria rumará, após o fim do governo de Assad, para um regime democrático, tão desejado pela população desde as primeiras manifestações inspiradas pela Primavera Árabe.
O líder do HTS, Abu Mohammed al-Jolani, se comprometeu em instalar um governo moderado. Mas o HTS é uma facção jihadista, radicalmente conservadora, historicamente aliada ao Al Quaeda. Será que conseguirá cumprir o prometido? Em um debate promovido esta semana no Brookings Institute, em Washington D. C., o pesquisador Asli Aydintasbas mostrou-se otimista. Para ele, a Síria ficará melhor do que estava. Pelo menos, milhões de refugiados poderão voltar para casa, segundo ele.
Entretanto, não custa lembrar os exemplos do Iraque e do Afeganistão. Nesses países, regimes ditatoriais e cruéis foram substituídos por outros tão ditatoriais e cruéis quanto os primeiros. Nesses casos, acabou-se trocando seis por meia dúzia.
*Ricardo Rodrigues é jornalista e cientista política. Ele escreve semanalmente sobre política internacional para
