
Artigo – Estabilidade política da França e Alemanha entra em colapso, por Ricardo Rodrigues*
17/12/2024 -
Ao aprovar uma moção de desconfiança do governo, ontem, o Parlamento Alemão demonstrou sua rejeição à liderança do Primeiro-ministro Olaf Scholz. E não foram poucos os votos que determinaram a dissolução do governo e a realização de novas eleições. Foram exatos 394 votos contrários à permanência de Scholz, contra apenas 207 a favor de sua continuidade no cargo. Abstiveram-se 116 parlamentares.
Surpresa
O resultado pegou a gente de surpresa. Afinal, o sistema parlamentarista alemão sempre foi uma referência da estabilidade institucional com a qual apenas sonhamos em terras tupiniquins. Por décadas à fio, o sistema político alemão produziu consensos a partir do diálogo e da construção de coalizões duradouras entre os principais partidos. Não à toa, nos últimos vinte anos, todas as comissões especiais de reforma política constituídas no âmbito da Câmara dos Deputados, aqui no Brasil, elogiavam o modelo alemão como exemplo a ser seguido.
O desfecho da votação, contudo, revela-nos que o sistema alemão sofre hoje de alguns dos males inerentes aos bagunçados sistemas latino-americanos. Refiro-me à fragmentação e à instabilidade política.
A estratégia de Scholz
Scholz sabia que perderia a votação. Depois que os três partidos da coalizão que lhe dava apoio se desentenderam, ele ficou sem maioria parlamentar e sem a menor condição de aprovar sequer o orçamento. O voto de desconfiança, com a dissolução do Parlamento e a realização de novas eleições fez parte de sua estratégia para tentar permanecer no poder na Alemanha. Foi por isso que ele mesmo propôs a moção de confiança. Scholz acredita ter condições de reverter a situação com uma nova eleição. Não é bem o que dizem as pesquisas eleitorais mais recentes. Segundo tais pesquisas, os candidatos do Partido Cristão Democrático devem terminar em primeiro lugar, e enterrar de vez as pretensões do chanceler.
Repeteco do caso francês
O voto de desconfiança no Bundestag da Alemanha ocorre 12 dias após um episódio semelhante acontecer na Assembleia Nacional da França. No início do mês, os parlamentares franceses aprovaram um voto de desconfiança contra o Primeiro Ministro Michel Barnier e seu gabinete ministerial. No caso francês, tratou-se do primeiro voto de desconfiança aprovado em mais de 60 anos. Ou seja, tão surpreendente quanto o caso alemão.
Revés para Macron
A saída forçada de Barnier representou um golpe para o Presidente Emmanuel Macron. Barnier foi nomeado por Macron, após o presidente ter dissolvido o Parlamento e convocado novas eleições, seguindo-se à vitória da direita nas eleições francesas para o Parlamento Europeu. A iniciativa de Macron freou o avanço da extrema direita, mas não conseguiu alavancar o partido de centro do próprio Macron. Sem apoio da maioria, a queda de Barnier era uma questão de tempo. Assim como também será, tudo levar a crer, no caso do primeiro-ministro recém nomeado por Macron em substituição a Barnier, o também centrista François Bayrou.
Os partidos majoritários na Assembleia Nacional, tanto à direita quanto à esquerda do espectro político, almejam a renúncia de Macron. Mas isso não deve acontecer. Macron tem mandato garantido até 2027 e já afirmou em alto e bom som que não renuncia, mesmo carecendo de apoio para governar.
A previsão para Alemanha e França é, pois, de turbulências e instabilidade política para os próximos meses, talvez anos. O pano de fundo dessas dificuldades relativas à governabilidade nos dois países é a grave situação econômica por que passam os dois países.
Problemas na economia alemã
Na Alemanha, a economia não vai nada bem. De acordo com o Banco Central alemão, a economia está estagnada, com o banco projetando uma queda no PIB para este ano. Isso depois do baque verificado no ano passado. A situação da indústria automotiva alemã talvez seja o melhor barômetro dos problemas econômicos enfrentados pelo país. A Volkswagen, por exemplo, anda muito mal das pernas. A companhia planeja fechar pelo menos três fábricas e demitir milhares de empregados. Mas a deterioração da saúde econômica da Volks é apenas a ponta do iceberg. Segundo pesquisa da S&P Global, os setores industrial e de serviços registraram a maior queda de empregos em mais de 4 anos. E, para piorar, a confiança de empresários e consumidores nos rumos do país nunca esteve tão baixa. Trata-se, na visão do IPEA alemão, de um pessimismo generalizado que beira uma depressão mental.
Crise fiscal na França
Na França, a situação talvez seja ainda pior do que na Alemanha. Muitos analistas descrevem a conjuntura econômica francesa como uma tempestade em ebulição. Na superfície, os números parecem refletir uma calmaria. O PIB deve crescer 1% este ano, a inflação baixou de 5% para 2%, e o desemprego mantém-se em 7,4%, considerado baixo para a França. Entretanto, tais números mascaram a prevalência de problemas como a queda na produção industrial, o aumento no número de falências e a redução da confiança do consumidor. O maior problema da França, contudo, é de natureza fiscal. A dívida pública vem aumentando a cada ano, com previsão para atingir absurdos 117% do PIB até 2026. O déficit governamental, por sua vez, este ano atingiu o patamar de 6,2% do PIB.
Ameaça à União Europeia?
A situação em que França e Alemanha se encontram política e economicamente pode representar uma ameaça para a estabilidade da própria União Europeia. Ainda que esse não seja o caso no curto prazo. Cabe lembrar que França e Alemanha são as duas maiores economias do bloco. De uma certa forma, a saúde política e econômica desses dois gigantes da região pode contribuir para o crescimento, estagnação ou declínio do próprio bloco.
Assim como grandes lojas são âncoras em shopping centers, França e Alemanha são o equivalente a âncoras na União Europeia. A vitalidade de suas economias serve como uma espécie de garantia para as demais. Seu papel no bloco assemelha-se ao papel de liderança comunitária previsto pela Teoria da Estabilidade Hegemônica, proposta por Charles Kindleberger nos anos setenta. Segundo este autor, uma economia coletiva requer a existência de uma estabilidade hegemônica, geralmente garantida por um ou dois países com conjunturas econômicas e políticas caracterizadas por um alto grau de estabilidade. Esse tem sido o papel desempenhado pela França e pela Alemanha no bloco, o de avalistas de estabilidade política e econômica. Não é por outra razão que a votação de ontem no Parlamento alemão, e a deliberação de 12 dias atrás da Assembleia Nacional na França, certamente estão tirando o sono de muitas lideranças do Conselho da Europa e da União Europeia.
*Ricardo Rodrigues é jornalista e cientista político. Ele escreve sobre política internacional em O Poder às terças.
